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quarta-feira, agosto 31, 2005

Título - Nome -Vírgula -Aí Sim Você 

Pela sétima vez, primeiro dia.

Estou no ônibus, tentando forçar o meu corpo a voltar a funcionar. Há dissenso entre as bases.

O Ministério da Visão funciona, mas só os setores considerados emergenciais.

O Departamento do Olfato e do Paladar colou avisos nas portas avisando que todos os serviços estão paralisados por tempo indeterminado.

O setor responsável pelo tato elegantemente instituiu só uma operação tartaruga. Acontece que, por isso, eu só percebi que estava com o braço encostado na boca do fogão até que um bom rombo nos gastos públicos tivesse ocorrido.

O ônibus chacoalha e o único funcionário que veio trabalhar em mim hoje foi o mau humor.

Esse, nunca falta. Nunca chega atrasado. Acho até que nunca na vida tirou férias. Sabe? Daqueles bem caxias.

Pelo menos, toda vez que checo o meu escritório, ele está lá. No cantinho, na mesa empoeirada e empilhada de coisas não-importantes para fazer. Trabalho para o mau humor sempre há e ele está sempre a postos. A questão é que às vezes a balbúrdia dos outros departamentos impede que se note.

O Sr. Mau Humor é muito fiel e eficiente. Nunca reclama, se não é notado. Continua. É assim funcionário soviético no escritório do Partidão.

Pois bem, estava nesse estado no ônibus, sacolejando a caneca de porcelana de café ruim do Sr. Mau Humor.

Sentou no banco do lado um rapaz bonito. Estava alegre.

O Sr. Mau Humor mandou imediatamente um ofício batido à máquina, com cópia em carbono, para ciência:

“Prezado Sr. Rapaz Bonito,

Nosso departamento detectou que o Senhor apresenta sinais de felicidade em plena segunda-feira, às seis e meia da manhã, em clara afronta às Resoluções Administrativas de números 135/89 e 1527/92.

Pedimos maior atenção às normas, svp.

Atenciosamente,

Sr. M. Humor,
Departamento de Estado-de-Espírito”

O rapaz bonito tinha olhos bem verdinhos e se chamava Rodrigo. Sei que se chamava Rodrigo, infelizmente não porque tenhamos começado uma conversa animada, mas porque assim dizia a pulseira dele.

Não acho um bom sinal, isso de se andar por aí com seu nome em um bracelete. Alguém pode pensar que você é retardado, foragido do hospício ou a reencarnação de Narciso.

Olhei para a pasta que ele empunhava, orgulhoso como o soldado que carrega a bandeira do batalhão. Lia-se, num adesivo escrito em Times New Roman: DIREITO.

Devo ter balançado a cabeça em pesar, exatamente como um soldado veterano ao ver o novato chegar de peito estufado, carregando a bandeira.

O pobrezinho ia fazer Direito. Lembrei do meu primeiro período, quando eu entrava na faculdade de Direito transbordando de orgulho. Parecia um milico, peito cheio de medalhas, chacoalhando metal que materializasse os meus sentimentos e me desse aquela deliciosa e fresca sensação de certeza.

Felizes dos que se sabem certos. Felizes dos que se sabem muito justos.

Mas as medalhas que sobraram em mim, as que não tive coragem de jogar fora, até essas enferrujaram.

Enferrujadas, colocadas em quadros com tampa de vidro, no fundo do meu escritório. Como lembranças de um passado que nunca foi glória, mas que é tudo o que se tem. Prova cabal do quanto o tudo da gente é risivelmente quase nada.

Só elas e meu mau humor restam, hoje, em mim. Rio de Janeiro vírgula dia de hoje vírgula nada. Folha em branco, sem a menor vontade de se enganar com tinta de caneta.

terça-feira, agosto 30, 2005

Opereta de Transporte Coletivo 

Cenário: ônibus lotado, meio dia e meia. (Olha só que lindo)

Primeiro Ato: Ênfase, pleonasmo, redundância e déjà vu.

Uma senhora sentada, eu estou de pé a seu lado. Um dos pins da minha bolsa, mais precisamente o da Lisa Simpson tocando sax, quase enfiado na sua orelha esquerda.

Ew... Meu pin da Lisa!

Enfim. O ônibus era de ar condicionado, o que significa que as janelas não abrem. Assim, quando tem 60 mil pessoas lá dentro, fica muito pior que o ônibus normal e mais barato, por algum desses paradoxos murphianos.

Se d-us existisse, ele se chamaria Murphy e seria muito sacana.

Esmagada por bundas que passam e que entalam, ainda tive que ouvir o desenrolar do seguinte “raciocínio”, cujo estopim foi um espirro estusiasmado:

(mulher, uns cinqüenta e alguns anos, grisalha, de tic tac verde na cabeça, para o velho ao seu lado): “Ai, que coisa! O senhor veja que bissurdo! (deve ser alguém que não escuta com nenhum dos ouvidos) Sabe, eu tenho baixa munidade (???), que é por causo que eu fiz radioterapeuta. Então, eu tenho baixa munidade! As pessoas vê que o ônibus não tem janela e mesmo assim pegam o ônibus gripadas! É um bissurdo! (Deduzi que o cara surdo é que devia estar gripado, coitado) E eu? Eu tenho baixa munidade! Por isso, qualquer vírus ou bactéria eu pego logo! Olha, já estou até ficando com dor de cabeça! (isso porque alguém espirrou, ela tem imunidade TÃO baixa, que chega a ser negativa, então ela já pegou a gripe e ficou com dor de cabeça)

Nisso, ela pega uma sacola de plástico do chão, tira uma garrafinha de coca-cola cheia de água e mete na boca. Ela explica que tem que beber muita água porque tem baixa munidade.

Lembrei de uma vez, quando eu e um querido amigo voltávamos de São Paulo num ônibus muito retrô da Viação Cometa, que tinha bancos de couro e tudo mais. Um sujeito começou a conversar com o motorista. Eles repetiam sempre uma frase, cada um. Sempre. Era como vírgula. Então, nós ficamos tentando inventar uma teoria lingüística do porquê que algumas pessoas ficam sempre repetindo a mesma frase durante toda a conversa.

Resumindo a teoria: missinapsia e algum grau de Síndrome de Tourette.

Segundo Ato: Ônibus e Sexo

Tenho uma teoria que poderia explicar a capacidade quase que nata de algumas pessoas de se entenderem sexualmente com as outras. Acho que a solução didática que o subconsciente contemporâneo encontrou para fazer tutorial sexual é andar de ônibus.
Sabe? Como aquelas coisas que a gente aprende, sem saber que serão instrumento para coisas maiores mais tarde. Tipo caligrafia ou jogar videogame. Então. Muitas coisas serviriam como artifício dos instintos basais para nos preparar para o ato reprodutivo da espécie.

Inclusive, acho que é por isso que aqueles caras mais sacanas, mais testosterônicos mesmo, de queixo quadrado e monocelha, nunca prestam atenção em uma palavra que a gente diz. É por isso. Eles estão mais do que preparados para a reprodução. Se eles ficassem mesmo ouvindo o que as mulheres dizem, nunca iam conseguir fazer sexo com elas. Ou porque elas têm baixa munidade, ou porque eles iam ter que fazer esforço pra entender e o sangue ia parar na extremidade errada.

Voltando ao ônibus: você tem um lugar muito quente, pra começo de conversa, e que sacoleja muito. Existe todo um aprendizado de equilíbrio e de apoio para achar uma posição que seja ao mesmo tempo confortável, segura e que não inclua esmagar alguma parte de alguém. Todo um exercício quase iôgui de gerenciar o baricentro em condições adversas de temperatura, pressão, movimento e atrito.

Depois, se você anda de ônibus, fica muito mais tolerante a invasões do seu espaço pessoal e ao cheiro de suor. Acho até que passa mesmo a apreciar, depois de um tempo, quase como cerveja.

Essa teoria tem a grande conveniência de, de quebra, ainda explicar a taxa de natalidade das camadas usuárias do transporte coletivo!

Vou andar mais de 457. Aprendo todo dia mais.

segunda-feira, agosto 29, 2005

Rock the Kibutz 

Aniversário de mami. Comprei os bombons de cereja que ela adora, uns que tem umas cerejas gêmeas na caixa. Então.

Como de praxe, como manda o Estatuto da minha família, por algum motivo, aniversário é o dia em que tudo vai te deixar puto/a.

Sabe como é. Acontecem mesmo umas coisas cármicas e cósmicas, acidentes em número ligeiramente maior, inundações no Sudeste Asiático, esse tipo de sinal cataclísmico. Mas, ao mesmo tempo, parece que a tolerância e o bom humor do aniversariante foram comprar presente na última hora e ficaram presos no trânsito.

Assim, cheguei em casa preparada (nunca popozuda, muito menos canina, mas não custa estar preparada): vesti o capacete, o colete à prova de balas de alto calibre, passei aquele rouge preto nas bochechas (não me pergunta por que diabos as pessoas passam esse negócio preto na cara quando vão sair pra guerra. Soldados e jogadores de rúgbi entendem mais disso do que eu, então não discuto. Não faço idéia de como tinta na cara vai influir no desenrolar estratégico de guerra, mas não adianta tentar extrair raciocínio de jogadores de rúgbi), joguei uns galhos por cima da mochila, protegi o fuzil e entrei em casa rastejando.

Nem mesmo todos esses anos assistindo filme de guerra com meu pai e meu irmão (ou melhor, corrijo: dormindo no sofá durante filmes de guerra, quando percebia que não era Apocalipse Now), nem morar na Tijuca, nem assistir sempre os noticiários europeus sobre as guerras nos outros lugares que eles mesmos começaram de alguma forma, agora acham uma barbaridade e estão ajudando a acabar, nada disso havia me preparado para o que viria.

Foi horrível, caro leitor. É até difícil de contar. Mas farei um esforço.

Saímos para jantar e ninguém tinha brigado ainda. Tinha que ser comida italiana, lógico, mas a localidade foi aceita unanimemente sem maiores discussões. Eu pensei: ta bom. Nem tudo está perdido. Sempre tem barraco nessas cantinas. É isso. Hoje, vai ser a gente.

Tentei de tudo. Falamos do PT, da política criminal de drogas do Rio, da flutuação do preço do dólar, até de música a gente falou. Nada.

Chegou a comida. Como de praxe, toda a família tem que tratar a nona como se ela fosse uma criança retardada. Assim, um a um, todos examinaram o prato dela em busca de algum resquício de algo saboroso, que seria prontamente transferido para o prato do meu irmão enquanto o interventor proferia um discurso de admoestação. Lógico que todo mundo queria achar o tíquete dourado – um pedaço de presunto – que era pra valer o discurso mais empolgado e revoltado.

Ainda por cima, eu sou vegetariana e presunto nem é kosher. Imagina o quanto eu ia falar se achasse o presunto! Mas não, a mulher da cantina, esqueci o nome dela, se antecipou e trocou o presunto da salada por peito de peru desfiado.

Não deu briga. Sempre sai o maior trelelê, mas dessa vez a velha sorriu e só.

Nem mesmo o fato de que ela – reincidentemente – esqueceu de colocar o dente gerou o usual esporro “mamãe-já-falei-pra-nunca-esquecer-o-dente!”. Sim, a frase anterior não faz o menor sentido, não se pode lembrar uma pessoa de nunca esquecer, mas isso não importa muito. Aliás, esclarecendo: trata-se de uma mini-dentadura de um dente só, ou melhor, da ausência dela.

Tudo estava muito estranho. Resolvi assistir à tv, que a programação devia estar menos bizarra e surreal que as cercanias.

Sabe o que eu vejo? O exército de Israel. A televisão estava lá na casa do Cacilda, mas a gente reconhece o exército de Israel de longe: é o único do mundo em que as mulheres vão para a porrada, em vez de serem enfermeiras ou secretárias de oficial. Não sei se isso é bom ou ruim, só digo que é bem peculiar.

Viu senhoritas com um puta armão, pronto, já sabe: ou é filme pornô ou é o exército de Israel. A diferença é o uniforme ou a falta de uniforme.

Mas, gente, não é que o Sharom ordenou a evacuação dos assentamentos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia? E mais: como ato unilateral de demonstração de boa vontade.

Quase que eu me internei no Pinel.O mundo estava definitivamente além da minha capacidade de compreensão.

A gente aprende na escola: “demonstração unilateral de boa vontade” é o nome que se dá ao fenômeno que ocorre quando um país da América Latina deixa que os EUA intervenham livremente em seus assuntos internos.

Aí, vem o Sharom (Alo-ou! O Sharom!) e manda seu exército evacuar os assentamentos? O Sharom, que é tão de direita que quase dá a volta?

Eu, vendo os soldados e soldadas chorando, arrastando os colonos que choravam, quase chorei também. Me deu uma vontade de cantar Barbra! (Piiiiipoooouuu...)

Nisso, eu noto a câmera focando numa tendinha. Sabe o que era? Era uma tendinha com psicólogos para atender os soldados e soldadas, que ficavam muito abalados de serem xingados de nazistas.

Desde quando soldado tem psicólogo? Na na nina não! Onde esse mundo vai parar? Se eles ficarem sãos, quem é que vai atirar nas pessoas com quem a gente estiver brigando? Não, está tudo errado. Todo mundo sabe: soldado volta pra casa maluco, fica tendo pesadelos, vira alcoólatra (na melhor das hipóteses, na pior vira governador ou presidente), escreve um best-seller e depois fazem um filme da vida dele!



Ai, pessoas do meu Brasil Vagisil... nada fazia sentido!

Quando estava prestes a ter um surto de abstinência de protocolo, lembrei que odeio protocolos. Refletindo sobre o novo protocolo que se formaria, indo em direção à nossa caranga verde metálico, eu juro que eu vi o Celso Melo. Eu sei! Ele está morto, mas eu juro que eu vi!

Fiquei achando, então, que tudo isso só podia ter uma explicação: eu tinha morrido e ido para o céu. Então, lembrei que sou atéia e os deuses não deixam entrar ateu no céu. Depois, lembrei que eu nem acredito em céu. Por fim, lembrei que, apesar de estranho, aquilo nunca seria o meu delírio de céu. Parecia demais com seriado de tv que passa na hora do almoço.

Nisso, eu vi um gato fazendo o moonwalk.

A-há! Peguei vocês!

Tenho certeza que um grupo de evangélicos guerrilheiros tomaram conta da ABIN e estão querendo me prender numa Matrixjuca. Mas não adianta, lero, lero, lé-ro, vocês nunca vão conseguir: se começo a ficar feliz e não é tequila, eu logo desconfio!

Como meu computador está quebrado, espero que Morfeu mande frases misteriosas por SMS.

O vendedor de doces da UERJ ficou meio puto comigo porque eu quis convencê-lo a me deixar comprar os delicados vermelhos todos, de todos os pacotes. Não deu.

Já comi os 3 que vieram e nada. Nenhuma baranga tatuada com coelhinho bisonho, nenhuma anoréxica/bulímica embalada em vinil, nenhum sujeito sério vestindo sobretudo muito hype ficou dodging bullets no meu terraço.

Bem, enquanto não acho nem o Delicado Vermelho nem os Tijolos Amarelos, fico com blusa preta e roque, nessa segunda-feira. Eu sei, o Sharif não gosta, mas tudo bem. Rock the Kibutz.

sexta-feira, agosto 26, 2005

Fair and Well: So Long. 

Peguei teu nome nas mãos e era tão bonito que quis guardar no bolso.

Lembrei que não seria muito certo. Devolvi para ti, para pedir licença dessa vez.

Não veio. Nem licença, nem nada. Veio só um vento frio, que eu ando achando que nem veio. Já estava aqui.

Resolvi então brincar com as letras, que ao menos as letras são públicas.

Peguei as primeiras letras do nome que o mundo escolheu para significar isso tudo: todas as coisas que eu vejo por dentro do halo de luz branca quase imperceptível que aparece quando o sol bate em você.

Peguei e estiquei, as letras. Espichei folha afora, até onde podia. Estiquei ao máximo, tentando fazer ficar do tamanho que eu te vejo.

Não deu. Lógico que não deu.

Ajeitei as pontas, cortei umas arestas e ficou simétrico, espelhado. Ainda mais bonito, pensei, e aí achei que tinha me enganado.

É possível. È possível ter visto errado, meio de lado, meio borrado.

Dobrei as pontas, para sustentar o quanto você tinha transbordado a margem de cima.

Olhei para cima. Como era de se esperar, não é aqui que eu ia te encontrar.

Deixei escapar um sorriso suspirado e fiz o que tinha que ser feito: me pus no papel também, onde nós existíssemos ao mesmo tempo, no mesmo lugar.

No fim, tudo fica mesmo nas entrelinhas

Aqui fora, tudo bem.

O que ficou de mim herdou o meu nome, já sem o seu.

Esse eu já assobia com as mãos nos bolsos. O outro, ficou só no papel.

Partenogênese de mim, agradeço por ser maior agora.

Aqui fora, tudo bem. No fim, tudo bem.

Tudo bem, que agora há mais luz, tanta luz: toda a luz a que tenho direito.

Acene da janela, quando o ônibus virar a curva, que aqui fora está tudo bem. Juro.
Quando o ônibus virar a curva que te prove a distância que você precisa, acene da janela para mim.

Quando chegar, escreva.

Au revoir.

quinta-feira, agosto 25, 2005

Morte De Grau 

Hoje, subi a escadaria correndo.

A escada rolante estava funcionando. O mundo até me oferecia atalhos.

Eu subi a escadaria, correndo.

Não havia quem me exigisse a presença. O mundo até me oferecia descanso.

Eu subi a escada. Correndo.

Não havia uma grande causa. Nenhuma bandeira. Nenhuma ameaça, tampouco. O mundo até me deixava ver a sua face sem gloria.

Eu, subi a escadaria: correndo.

Só uma coisa justificava a escalada dos meus degraus.

Só fugir do que havia em volta explicava o esforço de escalar assim.

Eu subi a escadaria correndo.

Antes morrer de escada do que de alguém que nem existe.

quarta-feira, agosto 24, 2005

A estranha poesia das caixas de bombom 

(de que adianta ser a mais?)

Sentei na cama, olhando para a bolsa de papelão. Não me lembro da última vez que eu tinha usado uma sacola de papelão.

Parece que, de alguma forma mística, todas as coisas que estavam me machucando encontravam uma contraparte material dentro daquela sacola de papelão.

O presente que eu comprei para dar a uma aniversariante que eu nunca tinha visto mais gorda, por exemplo. Quando a gente não sabe o que fazer, faz o quê?

Isso mesmo. Repete o protocolo, exatinho, troca as leis de Newton pelas de Asimov e seis por meia dúzia, como menininha fazendo bolo: toma cuidado para colocar a quantidade exatinha das coisas da lista de coisas que devem constar. Precisamente naquela ordem.

Fui lá na loja, como manda a solidez de milhões de camadas (frágeis porém idênticas) empilhadinhas: comprei uma caixa de bombons e uma rosa, da prateleira que dizia “apresentável”.

Comprei também uma outra rosa não-rosa para oferecer a alguma entidade transcendental que eu tinha inventado. Inventei para ter a quem recorrer, naquele momento de não querer acreditar que eu não tinha mais o que fazer. Engraçado como, às vezes, para continuar ateu, a gente tem que inventar uns semideuses.

Para ser vegetariano, às vezes se tem que ficar um tempo comendo peixe, sabe?

Então, dentro da sacola: uma caixa de bombons e duas rosas. Fui embora assim, voltei com a mesma sacola. Mas já não voltei tão igual assim.

Quase como voltar igual fosse alguma coisa que me mudasse, na verdade. Igual a virar o ano, no Reveillon: a mudança é esperada e aguardada. Como se mudar, ali, fosse justamente o que ia fazer continuar tudo igual.

Mas as coisas não se deram como eu tinha planejado. Que maldição, isso de expectativa.

Um chamado de amigo a gente não ignora. Dói pontada no peito, que nem miado de gatinho. Joguei para cima a festa da pessoa que eu nem nunca vi antes, lógico.

(Até felinos de carteirinha têm alguma parte canina, dizem.)

Das rosas, eu troquei as etiquetas de destinatário: quem vai dar rosas a desconhecidos quando um amigo te olha doendo? Quem vai dar rosas a semideuses quando te olha uma pessoa com cicatrizes do mundo?

A noite caiu, nós levantamos, subimos, voamos. Até quando não deixavam a gente cantar, que já estava muito tarde – muito cedo: não importava. A gente cantava sem cantar, estalava os dedos e dançava mesmo que sem sair do lugar. Nos bastávamos, como só amigos se bastam. Conjunto universo é sempre ficção, mesmo.

Mas voltei para casa com aquele gosto de quem sai pra fazer uma coisa e não faz.

Os sapatos novos que eu tirei para dançar ocuparam o lugar das rosas que eu mesma mandei o carteiro extraviar. E a caixa de bombons. Na sacola de papelão.

Em vez de há!menagem clichê, a caixa virou consolo mundano de sexta à noite. o que veio muito a calhar, para elevar o clichê a só mais uma coisa comum.

Voltei para casa com espectros de rosas e uma caixa de um bombom.

Linhas pontilhadas me olham de volta, quando eu olho para a sacola. Sentada na minha cama, eu tiro os adendos a mim que eu pus em cima do que eu sou, pensando na ironia que é se desfazer o que não se é, depois de montar o que não é para um acontecimento que não aconteceu.

E a caixa de um bombom me acena com uma promessa tímida de quem se sabe descartável e insuficiente, mas ainda assim está lá. Viva ainda. Nada importante, descartável, mas ainda assim viva. Ainda assim sujeito, mesmo sem predicado nenhum. Ainda assim, lá.

Olhei para ela e não pude deixar de me irritar com a semelhança que eu via entre certos aspectos patéticos de nós duas. Mas não havia opção e nós sabíamos.

Ficamos as duas assistindo tevê, naquela cumplicidade que só os vencidos por si mesmos compartilham. Depois, a tevê não falhou na sua tarefa diária de me entediar até a beira do enjôo e fiquei com vontade de escrever para o mundo sobre esses momentos em que eu acabo sendo uma caixa de bombons, também.

Ridícula. Previsível. Rasa e humana. Tão em formato de coração que chego a ser quadrada. Desesperada de encontrar o que ser, tanto, que aceito ser o que jurei que nunca seria.

Aceito que me comam o conteúdo. Aceito até que me deixem um só pedaço do que eu era. De propósito, só para lembrar como já fui um dia: ainda um tanto menos ridícula do que passei a ser. Aceito tudo o que o mundo enfia minha goela abaixo, ainda que eu não queira de verdade nada daquilo.

Aceito que me larguem vazia, sem qualquer explicação, como se isso fosse normal ou aceitável, e não a mais pura covardia. Aceito que me usem, que me arranquem o lacre. Mas, pior que tudo, aceito que façam isso tudo impunemente, sem ter que, nem por um momento, pensar no quanto se tem que estar destruída e amarga para aceitar ser uma caixa de bombons.

E ainda por cima suportar aquela embalagem toda, que promete que beleza de verdade há.

Para aceitar ser uma caixa de um bombom só, então, imagine você!

Aquele, que nem assim se quis. Aquele, relíquia de um passado medíocre. Aquele, certidão de um pretérito imperfeito, violador de todos os valores que um dia eu tive e que continuam aqui, no fundo, latejando por baixo do papel quase transparente, mas artificialmente colorido.

Aceitar que o meu tudo seja tratado como tão quase nada. Aceitar o silêncio empanturrado mas nunca saciado com tudo o que eu era.

Sabe o pior?

Aceitar. Nem lamentar o que eu deixei que me tornassem. Prostrar-me diante do semideus que eu mesma inventei e oferecer o que eu tinha de mais bonito, acreditando mesmo que me perdendo, ia me salvar.

Aceitar que o semideus me levasse embora sem nem me querer de verdade. Prostrada, idiota, rendida pela arma que eu mesma coloquei na minha mão. Minha mão, que apontava a arma que eu mesma montei, para a minha própria cabeça. Tudo em nome de uma entidade que eu mesma inventei.

Olhei para ela, a caixa de um bombom. Ela me reolhou. Choramos a nossa última oferenda ao mundo que não existiu e nos guardamos, vazias, dentro da gaveta da escrivaninha de madeira escura.

Quem sabe um dia sejamos lembrança, ao menos.

segunda-feira, agosto 22, 2005

Panacéia Paulista 

Tá todo fudido?

Acabou o seu dinheiro? Você estuda Direito e odeia? Sua mãe te dá esporro assim que você chega, de madrugada, de São Paulo? Seu trabalho está tão atrasado que você está pensando em pular da janela? Você está com dores pelo corpo TODO? Quem você ama caga solenemente para o outdoor em que você pintou com sangue um poema do Manuel Bandeira? Ninguém te avisou que não ia ter o primeiro tempo de aula de segunda? Passou a manhã na 20a. Delegacia de Polícia?

O QuêÊÊÊÊ!!!! Todas as anteriores???

Eu tenho a solução!

É muito fácil! É só cantar, no ritmo de "I'm too sexy", do Right Said Fred, rebolando até o chão:

"Quando eu mexo a minha bundinha,
Na passarela,
Quano eu mexa minha bundééénha,
Na passarelam,
Eu sou...
Muito quenéte pra minha blusénha,
Muito quenéte pra minha blusénha,
Tão quenéte que dóiam!"

sexta-feira, agosto 19, 2005

Enquanto Não Tenho Nenhuma Frase Que Termine No Ponto 

E se não existir certo além do belo?
E se vida acabar assim, pluft?
E se amor for pra ser dominó?

E se civilização for só plástico bolha?
E se a dor que eu sinto for só impulso elétrico?
E se não tiver nada de mim fora de você?

Se não tiver nada do outro lado da ponte,
Dessa ponte em construção em que estamos,
Você parava de colocar os tijolos?

Se eu não me pretender seu teto,
Você deixaria que eu fosse seu chão?
Se eu prometer que baixo a marcha,
Você me deixa seguir pela contra-mão?

Onde é que a gente se achou, assim,
Tão exaustos de sempre se perder,
Em vão?

Em vão? Quem vão? Em que vão?
Deixa o mundo tentar, que tentar
Não é aquele verbo de sempre perguntar?

segunda-feira, agosto 15, 2005

Quando sair, apaga a luz. 

(Gram - Você Pode Ir na Janela)

Se não vai,
Não desvie a minha estrela,
Não desloque a linha reta.

Você só me fez mudar,
Mas depois mudou de mim.
Você quer me biografar,
Mas não quer saber do fim.

Mas se vai,
Você pode ir na janela
Pra se amorenar no sol
Que não quer anoitecer
E ao chegar no meu jardim
Mostro as flores que falei.

Vai, sem duvidar,
Mas se ainda faz sentindo, vem!

Até se for bem no final
Será mais lindo
Como a canção que um dia fiz
Pra te brindar.

Você pode ir na janela
Pra se amorenar no sol
Que não quer anoitecer
E ao chegar no meu jardim
Mostro as flores que falei.


Você só me fez mudar,
Mas depois mudou de mim.

quinta-feira, agosto 11, 2005

"Você está aqui": 

Tudo bem, você preferir o amor. Eu, dôo-me.

(para quem?)

Talvez, para mim mesma. Por mim mesma, dôo.

(já viu que doer e doar acabam no mesmo ponto, quando falam de mim?)

Dava para colocar um alfinete no mapa.

quarta-feira, agosto 10, 2005

Verso de Menininha 

Eu amo e amo e amo,
Eu amo tanto que calo.

Calo e dou um passo para trás.
Um passo, pra te dar mais espaço.

Te dou espaço, que te quero sorrindo,
Sorrindo de volta, que te amo vindo.

Eu amo e amo e amo,
Eu amo tanto que saio.

Saio e te peço desculpas,
Desculpa, não foi como eu quis.

Eu quis e quero sempre te ver feliz,
Feliz, de não estourar por um triz.

Eu amo e amo e amo,
Amo que não cabe em mim.

Se não dá pra estourar você,
Murcho eu, que te amo assim.

Você nunca coube nem caberá,
E eu nunca disse que sim.

Eu amo e amo e amo,
Amo tanto que desamo.

Eu disse um monte de coisas,
Mas disse tudo sobre mim.

Sobre mim, fica você,
Que eu te amo, assim.

Sabe? Eu não sei explicar.
Última vez, me deixa tentar:

Eu te amo e amo e amo,
Muito mais do que cabe em mim.

Não dá pra escrever nem pra explicar, faz assim:
Pega o primeiro verso e põe reticências no fim.

terça-feira, agosto 09, 2005

Vestido Branco 

(te escolhi para meu guardião e é cruel, eu sei)

Me compra um vestido branco? Me compra um vestido branco e então a gente tinge com tinta de caneta bic, até ficar azul bem escuro. Todinho, bem escuro.

Me pega pela mão? Me leva pela mão, que eu preciso tanto-tanto da sua mão pra ter coragem de me soltar do mundo. Preciso da tua mão pra ter a coragem de ficar sozinha.

Me leva para a praia? Me leva, que eu tenho que chorar e gritar onde ninguém me escute. Onde eu possa escrever com raiva sobre as coisas bonitas. Onde meus dedos toquem brancura inerte e ela ceda, mas não fuja.

Me carrega nos braços? Me carrega, que eu já não tenho forças de lutar contra o avesso da minha pele. Me arrasta, que eu cansei de brigar pra não ser arrastada.

Me abraça? Me abraça, que o mundo está por demais inverso e eu já não consigo mais fingir que não vou ser destruida o tempo todo. Nem pra mim mesma eu consigo mais mentir.

Me leva até o mar? Preciso lavar o azul marinho, preciso ficar um pouco branca. Por menos que seja. Me leva até lá, fica tomando conta de mim. Não deixa ninguém atrapalhar quando eu começar a afundar.

Me compra um vestido branco? Compra, que eu preciso lembrar: como é que eu era antes que tudo o que eu vim a ser viesse me sujar?

Toma conta de mim, hoje. Que hoje eu não consigo mais ser mais forte, eu não consigo mais conseguir sempre. Toma conta de mim, que hoje eu quero virar correnteza. Hoje, eu não quis mais brigar.

Me protege, que eu preciso de você, hoje. Hoje é dia de sucumbir. Hoje é dia de parar de cair: hoje é dia de afundar.

Me envolve. Hoje é dia de me libertar. E você é quem foi sorteado para ser o meu guardião: não deixa ninguém me segurar, quando eu vier me buscar.

Fica comigo, que você é quem eu escolhi para chegar perto o suficiente, que hoje eu preciso de companhia para conseguir solidão. Definitiva.

Sabe? Cansei de brigar para ficar. Me ajuda, que hoje eu não quero precisar de ninguém.

sexta-feira, agosto 05, 2005

Grausame Ruhe 

Eu catei todos os pedacinhos brilhantes em mim. Não eram tão poucos quanto eu achava, gostei de saber, mas eram esparsos.

Eu catei todos. De que me adianta ter pedacinhos brilhantes?

É como ter pedaços de moedas.

Catei todos e colei numa tira de couro. Polidos, enfileirados, mosaicos, quase que orgânicos.

Quase vivos. Por um triz, não viveram. Bem que podiam.

Fiz isso. Pra ver se, tudo somado, valia a sua pena.

Ontem, dia quatro, eu empacotei a tira em pulsos. (quereria dizer impulsos?) Bem, de qualquer forma, mandei para você. Mandei, que não alcanço aí. Não tenho a senha numérica que desemboca no teu bom dia, nem o código logistico tridimensional que te aponte com um pontinho vermelho.

Agora, veja bem o senhor!

A gente se abre e olha só o que acontece:

(Nada.)

A gente promete que nunca mais vai abrir. Mas a cada costura, o tecido cede mais e mais.

E, de novo, sabe o quê?

(Nada.)

A gente jura por todas as entidades sobre-humanas do mundo, sejam deuses, bandas ou corporações, que nunca mais vai se deixar estúpida e com frio, chorando num chão de lajotas.

Sabe o que acontece?

Nada! Nem uma ficha, nem umazinha só.

Nadinha de nada, nichts, rien.

Humpf... Devia tocar Pato Fu logo por ande eu andasse, junto com uma anti-nuvenzinha que batesse sol na minha cabeça sempre.

quinta-feira, agosto 04, 2005

Agulha e Bússola 

Vem sempre um monte de pessoas aqui, comprar bússolas.

Um norte, todas elas querem um norte.

Daí, eu recortei da enciclopédia um texto ilustrado que explicava bem direitinho que o norte não fica mesmo no norte. Que é perto, mas não é lá. Que serve até para quebrar o galho, mas não é, de verdade, o norte.

Então, sabe o que aconteceu?

As pessoas compraram bússolas mais ainda.

A cada recorte da National Geografic com fotos do Pólo Norte que eu colocava na parede, mais pessoas vinham, esbaforidas, comprar bússola.

Um dia, apareceu uma franja que mal se via por cima do balcão e quis agulha.

“Agulha?”, confirmei.

“Agulha.”, confirmou.

Entreguei meu coração e a agulha, num pacotinho de papel pardo.

quarta-feira, agosto 03, 2005

Carta a quem ainda ama quem nunca me amou 

Essa noite, hemi-dormi com dor de cabeça. Aquela, por trás dos olhos.

Acordei com raiva da minha dor, dessa dor que vem de dentro de mim. E humilhada por não saber lidar com uma dor que, afinal, está em mim.

Se cabe em mim, como é que eu não sei conter?

Um continente tão pequeno, esse eu que eu arranjei de ser.

Resolvi então entrar num barquinho branquinho e remar bem pra longe dessas pessoas que sempre ficam na borda. Lá longe, lá onde o barulho muda, fica mais frio e mais esfumaçado, eu deitei no barco. Fiquei olhando para a soma azul dos gases do mundo.

Resolvi que era patética, essa minha dor. Tão pequena, tão insignificante, um grão de areia. O problema todo era que, ainda assim, era maior do que eu.

Quem souber fazer as contas, adivinhou o que é que conta, no fim.

Não gostei de tudo ter expandido assim de repente, o universo todo, sem me esperar. Minha arrogância preencheu o vazio do meu peito com um ar de orgulho que roubou da soma azul. Vazio, mais um pouquinho: ar. Pode até ser de orgulho, mas é ar.

Resolvi me imolar com Clarice Lispector. Lembrei que você fez bico quando eu disse que alguém tinha me comprado o livro que você ia comprar para mim, da Clarice Lispector.

Eu, o barco, a soma ainda azul e Clarice Lispector.

Sei lá porque diabos, nessa hora eu lembrei daquela tua rosa. Eu impliquei com a rosa, achei clichê, achei que estava muito abaixo do turbilhão que eu vejo nos seus olhos. Não sei, lembrei, sem saber a razão.

Se pudesse chorar ainda, chorava agora.

Eu sei que você ficou com raiva e a minha dor não te serve de consolo algum. Eu sei, porque olho pra tua raiva e aí ela vira minha.

Mais um item para transbordar a minha sacola de pele: a raiva que eu adotei, que era sua.

A coisa toda é que não sabia se chorava de alegria e arrancava os cabelos por ter descoberto que alguma coisa ainda consegue acender dentro de mim, mesmo depois de tudo. Não sabia se, em vez disso, me jogava, eu mesma, outro balde de água fria.

Sabe, poupa trabalho ao mundo.

Acender, ascender. Não sei escolher.

Quando dói demais, mais do que dá pra suportar, as almas grandes sabem: a gente procura dor maior.

E eu sei que é coisa de gente arrogante querer que o outro não entenda errado.

Mas ainda assim eu queria que você não entendesse tudo errado e achasse que não me importei com a tua rosa. Justo porque me importava tanto, eu segurei o céu até que ele me rasgou e eu caí de quatro.

Derrotada, vencida, jogada de boca no chão. Olha nos meus olhos! Olha tudo isso e vê que não dá pra fingir tanta coisa ao mesmo tempo!

Não dá. Não deu, desculpe, mas não deu.

Eu não agüentei e caí de quatro. Você me olha, esses seus olhos de imagem, de quem sente dor pelo pecado e também pelo pecador. De culpar e de perdoar. De ver o erro e de se ver no erro.

Você sabe, eu sei que você sabe e você sabe que eu sei. Quando eu estava caindo, vi nos teus joelhos o meu presente no teu passado. Eu caí.

Eu caí. (E admitir é tão mais difícil ainda do que levantar!)

Nem sei dizer o quanto disso tudo é aproveitável para alguma coisa. Acho que quase nada.

Lembrei de um documentário que eu vi, que dizia que se precisa de quantidades imorais de pétalas de rosas para conseguir uma mísera gota de essência de rosas.

Só me resta esperar que, vendo o meu sangue da cor do teu sangue, meus cortes exatamente iguais aos teus cortes, meus erros idênticos aos seus, vendo isso tudo, você veja alguma coisa de ti em mim.

Quem sabe, assim, um dia, a raiva morra.

A minha, eu decidi que vou matar. Talvez ensinasse mais ao mundo, se eu a deixasse solta por aí, quebrando coisas e pessoas. Talvez. Mas eu não quero mais esse tipo de raiva em mim. O mundo que aprenda sozinho, sem que eu tenha que sangrar em mais valia por ele.

Quando ele me bate e quando eu tenho que bater. Esse sistema emocional de economia colonial.

Então, decidi que vou matar a minha raiva. Ela está enlouquecida se debatendo dentro do quarto branco em que eu a tranquei. Acho que já adivinhou que eu planejo assassiná-la. Fica querendo fazer escapar um brotinho de si pelas palavras que ela grita pelas frestas.

Vou ficar aqui fora, com minha espátula e minha argamassa de silogismos. Cada vez que abre uma rachadura, argamassa.

Um dia, ela morre. Demora, mas morre. Não é como se eu nunca tivesse feito isso antes.

Só ainda não sei o que fazer com a minha dor. Ela ficava choramingando por aqui o tempo todo. De repente, resolvi que ia gritar com ela até ela calar a boca. Então, rápido, enfiei a dita cuja num saco e joguei no aquário. Sei que ela ainda está lá porque às vezes sobe uma bolha púrpura.

Não sei ainda se deixo a minha dor morrer, que nem a minha raiva. Até porque, ao contrário da última, eu nunca consegui antes matar a minha dor.

Vem sempre a minha pena, montada num cavalo shire preto enorme, resgata a minha dor e a esconde por aí. E assim ela vai sobrevivendo: se escondendo com outros nomes.

Ela é boa em se esconder em outros rostos. Nem dá pra ficar com raiva da cretina da minha dor, de tão boa que ela é no que faz.

Então, escrevi isso tudo para dizer que sei que te machuquei quando caí, mas não caí para te machucar. Se eu caí, foi que não pude mais ficar de pé, foi que não tive forças. Fraquejei, descuidei por um momento.

Peço desculpas por isso. Eu sei que você, alma grande que é, vai me olhar doendo e dizer amargas palavras doces. Minhas desculpas não mudam nada, mas são meu carimbo de visto. Minhas desculpas não valem de nada, mas eu as dou a você mesmo assim.

Que fique ao menos a intenção de boas intenções.

Não porque vá ao menos resvalar em algo do passado. Não vai. Mas porque pode servir de marco zero para depois que tudo acabar de pegar fogo nas nossas casas.

Engraçado como eu não pude resistir e até sorri, depois, vendo tudo destruído. Estranho mesmo, isso de ser tão bonita a coisa mais insana que se pode imaginar: o universo incandescendo.

Olho-te agora nos olhos, sem vergonha, mas com afeição e digo que faria tudo de novo, apesar de tudo. Não saberia fazer diferente e não vou mentir para você agora.

Você é uma alma grande demais para que eu minta. Nem mesmo consigo me fingir alguém melhor do que sou, sabendo que seus olhos de alma grande estão postos em mim.

Nossos alicerces em cinzas, postos assim um ao lado do outro, eu sei que machucam. Fica reforçando, repetindo, refletindo, tudo de novo. Atrapalha o trabalho de esquecer. Mas um não causou o outro, um não piorou o outro, um não influiu no outro.

Talvez agora tenhamos companhia para reconstruir. Menos com menos pode dar mais, dizem os místicos matemáticos.

Se for assim, temos boas chances. Se não for assim, vale a diversão de assistir a balbúrdia que se forma toda vez que se desmente a matemática.

(Deixa o título ser aquele, clichê mesmo. Mudei de idéia. Quem sou eu para me achar acima do clichê?)

terça-feira, agosto 02, 2005

Golem* 

Eu passo minhas mãos pelo mundo e, enquanto passo, deixo meu pó.

Às vezes, deixo pedaços.

Quando se está preso dentro de si mesmo, maciço, endurecido, caminhar é uma questão de jogar o peso para frente.

Então, às vezes, cair é o único jeito de parar.

Exigem de mim uma plasticidade que nunca vou poder ter. Exigem de mim carnes e ossos.

Às vezes, eu queria querer ser o paradigma, só para que eles entendessem o que significa estar por dentro dessas linhas, dessas classificações, dessas fronteiras.

O deus subconsciente e coletivo que legisla esse mundo me fez alguma marca indelével e quase imperceptível. O deus bedel desse mundo observa pacientemente enquanto colam esses bilhetes nas minhas costas.

Às vezes, eu percebo, mas não entendo. E choro sem saber por quê.

Puseram-me marcas nas roupas. Meus preços são mais caros, meus pesos são maiores. Meus esforços são sempre zerados, apesar de aumentados. Não me é dado o crédito pelo que pago a mais: o que pago a mais se justifica em si mesmo e justifica tudo o resto, que justifica o pagamento, por sua vez.

Às vezes, não importa o que a gente faça.

Sou impermeável, mas existe uma película de quase água em mim, assim, perene. Meus ouvidos são rijos, mas a música reverbera meu corpo todo, até quase rachar. Meus olhos são opacos, mas a luz me faz câmara escura de orifício e minha escuridão me faz amante invejosa do brilho.

Às vezes, eu sei coisas que ninguém merece saber.

Eu, ainda feita de barro, o mundo me sulcando com seus ventos, e gelos, e tempos.

Às vezes, as noites são só remendar feridas.

Eu, esse barro, esse quase... Torturada, inteira, pelo gosto de gente na quase-boca.

Às vezes, o nunca vem sempre.


*Para a tão bonita lenda do Golem: http://www.ced.appstate.edu/projects/fifthd/legend.html

Vistas e Ponto 

Ele chegou cedo ao café. Bom, ele sempre chegava cedo aos lugares.

Nem adiantava. Sabia muito bem que esse tipo de atitude transparecia carência e algum grau de submissão social. Do tipo que a gente vê naqueles documentários sobre hierarquia em matilhas de lobos.

Sabia que as pessoas têm sempre milésimos de segundo de trabalho cerebral para medir esse tipo de coisa. Sabia que invariavelmente aquilo contaria pontos preciosos que ele não recuperaria mais.

Ele sabia disso tudo, não era daquele tipo desajustado que simplesmente nunca foi capaz de compreender e reproduzir as sutilezas dos códigos sociais. Mas era quase incontrolável. O medo de perder um momento sequer da companhia das pessoas – aquelas pessoas que ele conseguia manter ao redor. Quase sempre, por pouco tempo.

Tão pouco, tão quase nada que mal merecia ser chamado de pouco.

Ele sabia do preço, mas havia a necessidade. Perrier e deserto de Atacama.

Depois, alguma coisa se partia. Tudo dissolvia, antes de feito, antes de vir a ser. Aborto, algodão doce.

E aquele paletó de risca de giz que a revista disse que devia ser lindo o estava incomodando demais. Sentia-se fantasiado, até um pouco efeminado. Vestido de calças de papelão.

Ele estava sentado, esperando. Ponderou suas forças, olhando para as linhas das dobras dos dedos. Não era um fraco. Ele melhorava, ficava mais forte.

Mas ainda não.

Tão difícil respeitar o próximo quando necessitamos desesperadamente.

Nesse momento, justamente, quando a gente está distraído, vem uma outra pessoa e faz um risco de giz, bem pelo meio de você. Escreve, em cima de cada metade: Desejo. Necessidade.

Não adianta protestar. É sempre assim com algumas pessoas.

Ela chegou logo depois. Cinco minutos de diferença. Cinco míseros minutos. Cinco minutos que doeram na nuca dele. Ajeitou os óculos no nariz.

Ela trazia uma amiga a tiracolo. Elas sempre traziam amigas para decorar ostensivamente a terceira cadeira. Sinais luminosos estrategicamente colocados em pontos precisos da risca de giz.

“Não ultrapasse a faixa amarela. Ela é sua garantia de segurança e proteção”.

Enquanto as duas se aproximavam da mesa, ultrapassando as outras mesinhas redondas com movimentos de quadril capazes de levá-lo a um outro estado de consciência, por algum motivo ele lembrou do seu gato. Afastou o pensamento quando elas chegaram, com um cumprimento que ele gostaria que tivesse soado mais indiferente.

Barulho de rabo abanando. Barulho de carimbo de passaporte.

Sentaram-se os três. Sorrisos de faixa inaugural. Ela toca no joelho da outra, pergunta o que ela quer beber.

Rolos de arame farpado chegam em caminhões do exército e são colocados violentamente ao lado da risca de giz. Sobe uma placa de homens trabalhando. Pronto. A cerca começaria a ser posta nele mesmo e ele assistiria a tudo. Em seco, em silêncio. Num Café, sorvendo um expresso.

Café DOI CODI.

A amiga dela tinha olhos lindíssimos, pensou. Não eram olhos bonitos. Não eram azuis, ou verdes. Eram castanhos mesmo. Eram lindíssimos justamente porque não eram bonitos. Eram profundos. Pareciam eternos. Devia haver uns cinco mil anos de olhos ali.

Falaram de cinema. A amiga dela não o desapontou e sacou um Bergman calibre 38, empunhadura bege. Já a outra tentou abrir o botão do coldre para sacar um Allen de cano curto, mas os dois concordaram em uma rendição honrosa, se ela desistisse.

Pegue dois rapazinhos que sempre perdem nos esportes coletivos da escola e tranque os dois numa quadra de squash. Toda aquela raiva. Velocidades supersônicas economizando décadas de análise.

Lá pelas tantas, uma trégua e a amiga dela levanta-se para ir ao balcão de doces. Só então ele volta a prestar atenção nela. Lufada de vento gelado ao sair da quadra, o corpo ainda quente.

Ela parecia chateada por ter sido praticamente ignorada. Não gostava de sair dos holofotes. Não que fosse uma pessoa menor, só não estava acostumada. Ele olhou para ela e não queria sentir pena. Mas ainda não era forte assim. Olhou para ela e pronto, a amava novamente.

Ainda tudo de novo, mais um pouco.

Pouco importava que ela tivesse deixado sair um “aflinge”, no prenúncio da conversa. Quer dizer, importava muitíssimo para ele, mas não ali. Por isso mesmo, precisamente, é que era assim tão grande tudo aquilo, apesar de tão pequeno.

Ela olhou para baixo e suspirou de novo. Comentou com um meio sorriso que gostaria de saber mais sobre cinema. E literatura. E pintura, e arquitetura, e acupuntura.

Ele olhava para ela. Como é que ele ia explicar tudo aquilo que estava se passando? Ele ia ter que parar, remoer aquilo por uma noite, pelo menos. Ele ainda ia ter que explicar na língua dela, depois que entendesse na sua própria.

Tanto trabalho, duas línguas tão diferentes. Além do mais, que nunca chegariam nem mesmo próximo uma da outra.

Não sabia. Talvez um dia, mas não sabia. Agora, não sabia explicar.

Tentou ganhar tempo, espremido no arame farpado pelo silêncio policial: tirou os óculos, alcançou um guardanapo e começou a limpar as lentes.

O papel deslizando em movimentos circulares. Minúsculos arranhões somam-se a outros tantos. Um daqueles duetos russos de patinação no gelo e aquele barulho de arrepiar a nuca.

Dava para ouvir o papel ser esmagado contra a lente. O silêncio policial recomeçou a incomodar.

Colocou os óculos, olhou para ela. Sem óculos, ele era um molusco. Com óculos, era um homem. Não o melhor dos homens, mas um homem, ainda assim. Mas, mesmo de óculos, a presença dela o lembrava que, por dentro, era um molusco.

Olhou para ela. Aqueles olhos estranhos que ele tinha. Lembrou que uma vez ouviu alguém explicar como uma lente conseguia esticar o espaço. Achou engraçado isso. O nome da lente era olho-de-peixe.

Quando ele olhava pra ela, esticava o espaço. Conseguia olhar para ela, em várias faixas, cortes histológicos de luz e foco. O fundo borrado, conseguia enxergar milhares de cortes, postas milimétricas de contraste. O fundo borrado, era tudo só fundo. Todo o resto do mundo era só fundo.

Ela era o conjunto universo. O leve halo branco que tangenciava o contorno da sua pele era o limite do tudo. Pouco importava todo o resto. A gramática, o cinema, a poesia, a granada que alguém acabou de colocar na mão dele.

Ela sofria, sentindo-se inferior.

Ele olhava para ela e sabia que só existe inferioridade no plural.

Ele baixou os olhos. Olhou por baixo da lente seu corpo de molusco. Antes da concha, do vidro, da madrepérola. E aquele arame, que todo mundo colocava tão bem.

Todo aquele arame.

Não dá pra se ver sangue de molusco. Nunca dá. Essa era a maior tristeza de todas.

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