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quinta-feira, fevereiro 21, 2008

A Última Memória é um Som* 

(Provavelmente a primeira também seria, se os verdadeiros inícios não fossem sempre esquecidos e se não forjássemos outros para tomarem seu lugar. De qualquer forma, toda história precisa de um início - mesmo que todos sejam falsos.)

Esse é o início desta: estou sentada no canto da parede. O canto de cima da parede, com as costas apoiadas no teto.

Uma vez, uma senhora me viu assim e perguntou o que eu estava fazendo, “empoleirada aí” .

Achei engraçado. Achei engraçado ela não perguntar “como?”, mas “o quê?”, como se fosse uma vizinha fofoqueira e policialesca perguntando que está fazendo uma criança.

Achei engraçada a palavra, também, empoleirada.

Respondi que não estava fazendo nada. Eu estava só olhando.

Ela balançou a cabeça e resmungou, daquele jeito que os velhos têm de reprovar, sem precisar de justificativa, sem aceitar explicação. Só reprovam e pronto, acabou. Aliás, desde a pergunta, o tom já mostra que qualquer que seja a resposta, ela será reprovada. A reprovação, aliás, parece já vir antes de acontecer algo digno de ser inquirido.

Mas me perdoe, I digress.

Estava empoleirada e passou uma guria. Eu também gosto dessa palavra. Guria. É uma das minhas favoritas. Tem um som engraçado e dá a impressão de que a pessoa é especial. Entende? Menina é palavra para pessoas-figurantes-fora-de-foco. Guria acende um feixe de luz e estabelece o centro de ação do palco. Não?

A guria empurrou a enorme porta de metal e vidro e entrou. Ela usava tênis sem meias e calças jeans com a bainha dobrada para cima. Trazia um livro na mão, fora da mochila e as lentes dos óculos estavam sujas.

Dava para perceber que ela comprava roupas de um jeito engraçado. Não estou falando daquele tipo de roupas que você percebe que não foi a própria pessoa que comprou – isso geralmente acontece com homens e crianças, pelo mesmo motivo: um terço de preguiça, dois terços de progesterona, açúcar e gelo.

Não. Dava para perceber que ela comprava as roupas sem se imaginar nelas, primeiro. Comprava as roupas bidimensionalmente, só. Estampa legal com algum dizer espirituoso + etiqueta de preço com o número certo de algarismos = boa roupa. Jeans sem rasgos ou manchas desbotadas artificiais + etiqueta de preço com o número relativamente mais aceitável possível de algarismos + insistência materna = boa roupa.

Isso é um tanto incomum, em gurias. Ou mesmo em meninas.
Meninas geralmente são capazes de rodar um software de simulação holográfica em suas cabeças, rapidamente. Rapidamente mesmo, como um processador neural que tivesse sido feito pela Ferrari. Elas caminham e, de relance, calculam os pontos de cada peça nos eixos “quão bonita é a roupa” e “quão bem fica no meu corpo”.

Isso inclui saber dizer que cor combina com que tom de pele ou, em alguns casos, mais admiravelmente ainda, com que variação natural do tom de uma só pele ao longo das estações do ano combinaria mais uma tal cor. Genial.

Mas não essa guria. Definitivamente.

Entrou pelo saguão, atravessou-o sem notar nada – nem mesmo que eu estava empoleirada, mas isso é de se esperar, quase ninguém parece notar – com as pupilas em um grau de dilatação que me levaram a imaginar que já não estava prestando atenção no que fazia há pelo menos algumas horas.

Entrou no elevador, apertou um botão sem olhar, enfiou a mão no bolso da mochila sem olhar, pegou um molho de chaves (eu também adoro essa expressão, sempre penso em um prato de espaguete com chaves raladas por cima) e ficou olhando – “olhando” para o carpete. Se alguém tivesse trocado o carpete, ela provavelmente não notaria. Parece que ninguém trocava nenhum carpete dela há muito, muito tempo.

Saiu do elevador, acendeu a luz do corredor no interruptor e caminhou até sua casa. Não me refiro ao apartamento em que morava, me refiro a uma dobra da escadaria que subia para o andar superior do edifício. Sentou-se no décimo - segundo degrau, de primeira no lugar mais confortável, o que me pareceu significar que ela fazia isso com certa freqüência.

Não são muitas as pessoas que têm um lar assim tão convenientemente perto do lugar onde moram. E muitíssimas têm que mentir para muitas outras pessoas para poder continuar morando longe do lar, e vivendo longe de onde moram. Isso frequentemente inclui mentir, omitir e deliberadamente enganar as pessoas que mais se ama.

Ela sentou no décimo - segundo degrau, abriu o livro marcado com um papel qualquer – não, espere, é uma etiqueta, ela está usando uma etiqueta de tênis como marcador – e olhou para fora de um basculante absolutamente empoeirado. Olhei as guimbas de cigarro lá embaixo, bem na linha do basculante, e imaginei que ela ia puxar um pacote de cigarros.

Ela não puxou e isso me deixou um pouco triste. Não estou muito certa do por quê.

Em vez disso, ela sustentou um olhar cansado para fora da janela por alguns instantes. Depois, fechou os olhos, com uma certa dor e uma certa resignação. Como se ela sempre olhasse para fora da janela, com alguma esperança, e alguma coisa lá fora estivesse sempre presente – ou ausente. E ela voltava a ler.

Leu por quarenta minutos. Não tive coragem de interromper.

Levantou-se duas vezes, quando a luz apagou. Por fim, fechou o livro, esfregou os olhos, apertou a espinha com as mãos, alcançou a chave no parapeito da janela, separou a chave da porta e entrou.

Era fim de tarde. Eu geralmente espero as pessoas acenderem a luz, mas ela não acendeu. E pelo jeito dela caminhar, o som confiante dos passos, ela não devia acender quase nunca.

Sentou-se no sofá. Melhor dizendo, largou-se no sofá. Sentei no braço do sofá.

_Oi.

Ela me olhou. Por um instante muito fugaz, com surpresa. Depois, com curiosidade.

Existem dois tipos de pessoa: os que demoram mais no estágio da surpresa e os que demoram mais na curiosidade.

Ela sabia quem eu era e o que eu fazia – o que dá no mesmo, hoje em dia, já que até eu me tornei o que eu faço, sem títulos – nem mesmo o título de sem-título, que entra e sai de moda.

Ela levantou-se um pouco, para me olhar melhor. Tinha a boca um pouco aberta e as sobrancelhas franzidas, mas de uma forma adorável.

Então, ficou de pé. Num tom um tanto desconfiado, disparou:

_Onde estão suas asas?

Eu olhei para ela e esperei. Gosto dos que eu posso esperar.

Ela entendeu e fez “hummm”.

Mas eu não estava preparada para isso: ela aproximou-se e me deu um longo abraço. Depois, me largou, abriu os braços e as asas dela saltaram das costas. Ela tinha talento.

Olhou para dentro do armário. Uma carta estava lá, pronta, esperando o selo. Ou melhor, esperando um destinatário, que selo não ia ter nunca. E era um envelope enorme, na verdade.

_Posso tirar a carta da gaveta?

_Eles vão encontrar. Eventualmente.

Ela pareceu duvidar.

_Posso... só abrir a porta do armário?

Parecia uma coisa importante. Não respondi. Ela abriu. Meio sorrindo, meio enchendo os olhos.

Voltou, pegou minha mão, entrelaçou nossos dedos. Foi bom ser surpreendida, depois de tanto tempo.

Por fim, ela disse:

_Vamos?



("The Sound of Her Wings" é o título de uma das histórias do Sandman. Esse post é uma homenagem, de certo modo, a Neil Gaiman e companhia.)

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