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terça-feira, maio 03, 2011

Era Uma Vez Um Molequinho na Loja de CD 

Eu era um molequinho, naquela época.

Ou "uma moleca", como dizia rindo e lindo meu avô postiço quando me via subir no telhado da garagem pra buscar a bola de futebol, algo que ele já tinha proibido todo mundo de fazer. Comigo, ele não ralhava, o meu avô postiço, síndico perpétuo do prédio. Não sei se era porque eu nunca caía, ou porque eu não subia lá pra fazer arte nem pra fazer graça, ou porque eu era uma menina. Ou se era porque eu era a neta postiça dele, desde que meus pais foram pra maternidade com o meu vizinho-avô-postiço-perpétuo síndico a tira-colo.

Eu objetivamente não sei quem estava mais certo na descrição, os que me olhavam irritados e me chamavam de molequinho, ou o meu avô-síndico, que me olhava com carinho e colocava um marcador feminino sorridente na minha molequice. Eu só sei que gostava muito mais de sorriso que de olhares de cara-de-coruja-seca. Definitivamente.

Pois estava eu de bermuda de tac-tel, chinelo e camiseta - molecantemente, portanto - com a minha mãe nas Lojas Americanas. Eles já tinham CDs na loja naquela época - e ainda tinham CDs na loja, naquela época.

CDs eram caros, veja você. CDs eram uma coisa que você desejava ardentemente (não tinha MP3, não tinha discussão sobre direitos autorais, não tinha iTunes). Fita era uma coisa trabalhosa de se fazer: alguém precisava ter o cd, o que era socialmente trabalhoso - achar, convencer, emprestar. Ou então você precisava ficar de prontidão pra apertar o "rec" no aparelho de som dos seus pais quando tocasse a música no rádio. Isso, claro, se a música tocasse na rádio que você ouvia.

E isso era um grande se numa época em que só tinha meia-dúzia de rádios no mostrador com ponteiro.

Pois bem, mesmo sendo caros como eram, de vez em quando eu ganhava dos meus pais uma nota promissória: eu recebia oficialmente o direito de comprar um cd de minha escolha, o que significava um combo de dois prazeres: ter um cd e, mais importante, ir à loja escolher um cd.

Às vezes, meus pais mesmos tomavam a dianteira e compravam um cd que eu e meu irmão estivéssemos comentando muito. Por exemplo, uma vez eu entrei com uma petição pra ganhar o CD do Gabriel o Pensador, porque eu estava amarradona naquela onda de rap em português que falava mal do presidente. Meus pais, divididos entre apoiar a minha verve republicana liberal e evitar que eu falasse palavrão, compraram o cd, com uma condição sine quae non: eu não podia, de jeito nenhum, cantar a parte dos palavrões. Era a minha versão doméstica do piiii que maneira os desbocados na televisão. Eu cantava raps engajados usando um boné pro lado no meio da sala e, enquanto dançava e rodopiava o disco (sem a agulha, pra não riscar), parava de repente no meio da frase e remixava meu silêncio bem-comportado na letra proibida. No final, não uso mais boné pro lado, mas aprendi com os meus pais: idéias nunca mais devem ser caladas, mas ser agressivo ao falar também é um jeito de censurar o diálogo. Os dois silêncios precisam ser evitados, com ou sem boné pro lado.

Minha mãe sempre me contava que o pai dela - uma figuraça de anti-herói aprontador não muito presente - sempre dava dinheiro pra ela comprar discos. Não sei se era por isso, mas de vez em quando eu ganhava um CD mesmo sem ter feito nada por merecer (do tipo lavar toda a louça antes mesmo de alguém pedir). Mesmo sem ter pedido com insistência pra corroborar o volumoso investimento com uma certeza de prolongada alegria. Talvez, em algum nível muito indireto, meu avô não-postiço tivesse plantado uma semente boa e bonita, lá atrás, pra sua neta molequinho.

(Eu acho que ele ia usar o masculino diminutivo, com cara-de-coruja-seca. Eu nunca conheci o meu avô, mas a minha avó reportava que ele dizia que "mulher sem brinco não é mulher de verdade". Eu dava de ombros, blasé, e dizia "então não sou, ué", o que escandalizava profundamente a minha velhinha querida. Mas quem sabe ele usasse o feminino com sorriso? Ou, quem sabe ainda, ele me chamasse com masculino, diminutivo sem-cara-de-coruja-seca e um sorriso? Nunca vou saber.)

Minha mãe, que em matéria de gêneros nunca deu sorriso pro moleque nem ralhou com a moleca, resolveu naquele dia nas Lojas Americanas ser tocada pela semente musical do seu pai fuguraça anti-herói. Virou-se pra mim, com o CD dela nas mãos (era Beatles, aposto) e disse "você não quer escolher um cd pra você?".

Ok, preciso esplicar o que se sucedeu a essa pergunta. E o que se sucedeu foi um sorriso, seguido por uma sobrancelha bem franzida. A parte do sorriso é fácil de entender: música + molequinho = sorriso. Isso é uma constante universal, em número, gênero e grau, em todo o tempo-espaço. Chega a ser um imperativo categórico kantiano, como (i) não matar outrem, a não ser em legítima defesa, (ii) escolher sempre ir comer pizza, a não ser em legítima defesa e (iii) nunca deixar a namorada sem sorvete, em hipótese alguma, mesmo em legítima defesa.

A sobrancelha franzida se deu porque eu sempre era tomada por um sentimento de desconfiança inescapável quando alguém me oferecia alguma coisa. Será que era uma daquelas situações enigmáticas em que era de bom tom recusar? Eu nunca consegui mapear com certeza a geografia da recusa e a Glória Kalil nunca escreveu um tratado sobre esse assunto.

Pois bem, quando minha mãe me garantiu que eu não estava sendo uma pirralha monstrenga egoísta que impinge à própria progenitora uma carga desnecessária e banhada em hedonismo ditatorial infanto-juvenil, lá fui eu iniciar o processo de escolha do cd.

Pra quem nunca viu, a dança que se prossegue parece complicada, mas não é.

Geralmente, você já está paquerando algum cd, ou mesmo dois. Sim, isso é normal e sempre acontece, embora ninguém goste de falar disso. Você vai até eles, disfarça passando os dedos na fileira ao lado, clec, clec, clec. Você finalmente pega o cd, olha a capa e vira, tentando (a) lembrar se conhece as músicas pelo nome ou (b) decidir se os nomes parecem atraentes o suficiente a primeira vista, mesmo se desconhecida sua real personalidade. Ler o nome das músicas no verso é como dizer um "oi, qual é o seu nome?". Daí, você prossegue para o outro pretendente a cd de cabeceira e faz a mesma coisa, até que só sobrem na sua cabeça aqueles dois que você estava paquerando desde o começo. Aí, não tem critério: você ouve a voz do coração e escolhe um.

Ou joga uma moeda. Ou compra os dois e não se importa com o que os outros vão dizer, se resignando a comer sanduíches por um tempo.

Outras vezes, você não conhece ninguém ali. Todo mundo é novo e você vai passeando pelas prateleiras meio sem jeito, clec, clec, clec. Fala oi pra algum cd, vira pra ver as músicas, clec, clec, clec, clec. Pode ser que algum te conquiste ali, na mosca. Pode ser que não e aí você volta pra casa sozinha. É a vida.

De qualquer forma, o cd pode ser uma profunda decepção que vai durar só uma faixa. Ou pode ser uma dúvida que dura só uma noite. Ou pode ser que dure mais um tempinho. Pode ser que ele fique por um tempo e depois se torne um amigo, que visita de vez em quando pra um encontro casual. Pode ser que ele vire uma obsessão que te consome por meses a fio, tocando no repeat e te fazendo rabiscar letras em pedaços de papel. Pode ser ainda que seja uma paixão passageira que te envergonhará no futuro, quando você vai pensar "onde diabos eu estava com a minha cabeça?".

E pode ser daqueles que você vai comprar várias vezes ao longo da vida, toda vez que você se mudar, ou que você emprestar e não devolverem, ou que a sua ex não incluir na caixa de suas-coisas-pra-você-ir-buscar-na-portaria.

Naquele dia, eu escolhi o "Everybody else is doing it, so why can't we?", dos Cranberries, inspirada pelo videoclipe que tinha visto no Clip Time da Cultura Inglesa. Hoje me parece óbvio que ao escolher aquele cd eu estava sendo arrastada pela força inefável da correnteza de uma paixonite adolescente.

Quem nunca se apaixonou pela Dolores O'Riordan que jogue a primeira pedra.

Foram-se os hormônios, ficaram os ouvidos e as lembranças. Hoje, bati o olho na foto da capa, os Cranberries novinhos num sofá e um fundo preto, numa loja que revende livros e cds por aqui nesse nortão frio e chuvoso do mundo.

"Oi! Caramba, há quanto tempo!"

Fomos lá pra casa tomar um café, ouvir umas músicas e botar o papo em dia. Acho que os Cranberries nunca vão saber o quanto foram importantes pra mim, mas tudo bem. Tem amor que se basta em si mesmo. Tem sorrisos que você aprende a confiar que vão sempre voltar, mesmo que passe muito tempo.

Aquele dedilhado de abertura ainda me arrepia a nuca. E eu volto a ser só uma moleca - ou um molequinho, a essa altura fica a gosto do leitor - de bermuda e camiseta, deitava na cama, com os olhos fechados. Eu volto a ter a idade em que eu ainda não sabia o que eu ia ser da vida, em que língua eu queria cantar, quem eu ia me permitir amar, que outros cds iam ficar comigo até que a morte nos separe. Mas ali, de bermuda e camiseta, deitada na cama, eu me peguei repetindo "everybody else is doing it, so why can't we?".

Ainda vale repetir a pergunta. Why can't we? Hoje, se eu pudesse, era isso que ia perguntar aos ministros do STF às vesperas do voto de amanhã: why can't we?

De qualquer forma, avisa aí aos Cranberries: I still do.


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