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domingo, junho 28, 2009

Bule Azul 

A cidade se encolhia, sob a chuva que tamborilava nos telhados, como que impaciente.

Ela dobrava cuidadosamente uma camisa sobre a cama.

Decidiu ir embora. Sentia-se já seca, como a terra no jardim em frente, que implorava há semanas pela chuva que não vinha.

Não tinha mais lágrimas. Nem dúvidas.

Pôs a camisa na mala. Não levava todas as camisas - algumas estavam gastas demais, de algumas nunca gostara, algumas tinham lembranças demais entranhadas em cheiros nas fibras descoloridas ou coloridas artificialmente.

Fazia tudo com calma, mas sem se arrastar. Nada mais a prendia, nada mais a empurrava.

E, pra falar a verdade, estivera fazendo aquela mala há anos.

Sabia que não deixaria bilhete. Que escrever em um bilhete como esses, céus?

Não, é muita loucura partir e deixar bilhete.

Em vez disso, deixou os diários para trás, na gaveta do criado-mudo. Achou que era um lugar apropriado para deixar quem fora.

Dobrou o casaco, encaixou por cima de um par de sapatos pretos. Suspirou e fez os fechos da mala clicarem em uníssono. Um certo alívio de sentir a leveza de bastar-se numa mala - todo aquele espaço em branco, não mais no presente, mas no futuro, sorria como uma promessa de caderno novo.

Passou os dedos pela parede da cozinha, olhando tudo pela última vez. Passou rápido pela sala. O quarto lhe era indiferente. O banheiro era por demais mórbido - sabia de coisas demais.

Mas demorou-se na cozinha e se supreendeu com esse pensamento.

De repente, seu olhar pousou no bule. O bule azul clarinho, clarinho, em cima do fogão. Era esmaltado. Tinha uma lasca faltando logo abaixo do cabo, do dia em que o bule despencou da prateleira.

Não lembrava de ter comprado o bule. Foi tentar alcançar alguma coisa na prateleira e veio o bule abaixo, fazendo um escarcéu.

Não sabia bem o porquê, mas desde aquele momento o bule a tinha consquistado.

Não tomava chá desde pequena. O bule, reclamando de ter sido bulido, rolava pelo chão da cozinha silenciosa de fim de tarde e foi parar em baixo das cadeiras.

E ela se lembrou de como ficava em baixo das cadeiras, ouvindo as mulheres conversarem, rirem, choraram e sussurrarem na hora do chá. Nunca tinha conseguido se sentir completamente parte daquele misterioso mundo - nem mesmo hoje, muito menos na época em que se sentava sob a mesa, protegida pela toalha de bordas de crochê.

Tocou o bule azul com a ponta dos dedos, como que a acarinhá-lo. O bule estava quieto, ao contrário do costume.

Ela pensou que devia ser a coisa ao mesmo tempo mais triste, mais bonita e mais ridícula do mundo alguém sentir que um bule lhe compreendia melhor do que ninguém jamais compreendera.

Bem, bem. Triste e rídicula ela já era. Faltava dar conta do terceiro.

Pôs o bule sob o braço, pegou a mala e bateu a porta.

segunda-feira, junho 22, 2009

Reflexinhos e Reflexões 

1) Eu acho que nunca tinha percebido que refletir pode se referir a reflexão ou reflexo. Será que o radical é o mesmo, ou será que é são palavras diferentes que evoluíram até ficar parecidinhas? Eu chuto na primeira hipótese, o que me parece incrível, porque significa que o povo lá atrás via grande semelhança entre se observar e o que a gente depois veio querer achar que era observar o mundo.

Vamos lá, eu sei que é uma questão filosófica mais antiga que cumbuca de argila, mas vou tentar, aqui: to aqui olhando pro mundo, ou melhor, pro que eu enxergo do mundo. Mas também tem um mundo fora do que eu enxergo, que interage com o que eu enxergo - eu mudo de opinião em contato com outras opiniões e quando dá um daqueles famosos estalos. O que não significa dizer que eu discordo totalmente do pessoal que diz que não faz muito sentido pensar muito no mundo "real", fora do discurso, porque a gente só processa discurso, mesmo. Algo como pretender que meu notebook processe uma rosquinha de doce de leite - se eu não traduzir pra uma imagem no meu pendrive, ou para um conceito digitado no teclado, tudo o que eu vou conseguir é doce de leite na entrada USB...

2) Vinha eu no metro, lendo um artigo sobre evolução e comportamento sexual animal. Muito bom, aliás, o artigo. Me fez pensar em como é difícil falar em certos aspectos da sexualidade animal usando o vocabulário (carregado de valores morais, inclusive) que desenvolvemos para lidar com gente - gênero, por exemplo, que era o que me interessava no artigo.

Tem uma espécie de caramujo em que todo mundo começa macho e depois muda de sexo, de acordo com interações químicas. Isso me deixou completamente boquiaberta. Já imaginaram, isso, de mudar de sexo? (e todas as variações possíveis humanas - de identidade de gênero, de orientação sexual, de sexo cromossomial, de sexo fisiológico, de papel social, de papel sexual..)

3) Já chegando em casa, cansada, parei de ler e fiquei olhando pra página do artigo. Ela saiu de foco, fiquei olhando só para o padrão dos riscos sublinhados em vermelho - literalmente, viajei.

Daí, me veio uma idéia. Sabe quando a gente olha pra um dado e sabe que cinco pontinhos são cinco, mas quando a gente olha pra caixa de fósforo pensa só "um monte"? Sabe também aqueles caras com Asperger, do tipo Rainman, que olham pra caixa de fósforo que nem a gente olha pro dado e pensa "47"?

Então. Sabem como a gente olha umas 4 palavras juntas e lê de uma tacada só? Pois então, já imaginaram que desse pra dar um boost na inteligência e ler de página em página?

Eu ia ser MUITO feliz.

(quando eu era criança, me lembro que ficava imaginando como ia ser legal quando eu fosse adulta, pudesse ler rápido, mais rápido, mais rápido - até chegar, como eu acreditava, no nível de ler uma página com cada olho. Afinal, se a gente tem dois olhos, porque não pode usar um pra ler cada página???)

3) Não sei se vocês viram, mas jogaram uma bomba caseira de um prédio em cima das pessoas que estavam no Largo do Arouche, no dia da parada do orgulho gay de Sampa.

Agora, fico me perguntando: se tem mandado de busca e apreensão por área sendo aplicado a rodo nas favelas do Rio, porque não conseguiram rapidinho um pra vasculhar o prédio de onde jogaram a bomba?

Pensem comigo: (i) não se faz uma bomba em 5 minutos, nem com coisas da geladeira - nem o MacGyver consegue. Portanto, é razoável dizer que dá pra achar traços de coisas incomuns em um apartamento paulistano em que o sujeito ou sujeita esteve preparando uma bomba; + (ii) uma bomba pela janela é claramente um atentado à vida - na minha opinião, mais grave ainda do que (ato já bem grave) um sujeito portando uma arma perambulando na favela, que é justificativa para atirar e matar na hora, em terras de Marlboroland cariocas + (iii) se pode mandado de busca e apreensão por área no Rio, por que não pode em São Paulo? É razoável que se conseguisse encontrar o responsável, dessa forma. E não consigo imaginar um cidadão razoável que se opusesse a uma busca para descobrir quem arremessou uma bomba pela janela - coisa que nem se pergunta no contexto das favelas cariocas.

Por que ninguém fez? Se é constitucional colocar esse poder na mão da polícia carioca, conhecida por suas violações contra uma população que nem conhece seus direitos ou não enxerga o direito como saída para acabar com abusos de autoridade, não é mais inconstitucional no Lardo do Arouche, onde eu du-vi-de-o-dó que policial fosse metendo o pé na porta, dando tapa na cara e confiscando a tv?

Por quê? Será porque as vítimas são viadinhos ou porque os revistados não são favelados?

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