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quarta-feira, setembro 28, 2005

Bodas de Lâminas 

Eu atraio as pessoas para órbitas ao meu redor quase sem querer.

Órbitas que as pessoas não merecem, mas aceitam. Dolorosamente, eu observo enquanto elas aceitam.

Órbitas que eu gostaria de não precisar, mas de que necessito com uma fome vulcânica. Rasgando, eu sinto os joelhos dobrarem sob o peso de mim mesma.

Eu sou feita de um tipo horrível de mulher que não sabe se apaixonar, a não ser pelo intangível. Por aquelas pessoas e situações que lembram um carro velho na ladeira: vão puxar o freio de mão e calçar o pneu de trás antes mesmo da primeira tentativa de subir.

E de me apaixonar pelo que não seja ainda. E pelo que esteja impossível.

De me enganar e me arapucar em situações que o senso comum saberia evitar.

Nunca soube pertencer a alguém. Nunca soube ceder a desejos que não o meu próprio desejo de não mais desejar.

E tudo foi acontecendo de forma a me prender numa rede de xeques-mate que eu mesma dei, jogando contra o mundo.

Jogando contra o mundo, que já nasci com outra cor de peça, me prendi em xeques-mate que não sei mais desfazer, a não ser mandando o tabuleiro pelos ares.

Mas não posso. Cada vez menos eu posso mandar o tabuleiro pelos ares, que cada vez mais há mais peças alheias atraídas para órbitas no tabuleiro.

Se fosse me arrebentar, só, já o tinha feito há muito.

(Até porque não há quem ame mais a dor.)

Até me casei com a dor, um dia. Era ainda menina.

Até então, eu andava de mãos dadas com a Felicidade, vestido cor de pérola com fitas azuis, daquele azul cor de céu em dia muito quente.

Mas um dia, passou a Dor de vestido nublado e um par de asas cinzas. Passou do meu lado, todo mundo riu.

A Felicidade riu. Eu baixei os olhos, para ela não perceber que eu não podia rir.

E chorei uma lágrima só.

Aquele choro de uma lágrima só. Que a lágrima sai e depois não dá nem para continuar chorando.

A Felicidade riu junto com todo mundo. Riu do vestido nublado. Riu do andar marchado, que os passos pareciam ter que desenterrar raízes. Riu da coluna envergada, que nos ombros tinham que caber as dores todas e mais ainda os risos.

Riu das asas pequenas demais, incapazes de levantar aquele corpo, ainda que não carregasse o sobrepeso dos choros e risos de todas as coisas do mundo.

Riu das manchas de barro nas pontas do vestido, nas pontas das asas, nas pontas dos dedos, nas pontas dos olhos.

Eu baixei os olhos e escondi a falta de riso. Eu não ri. Eu não ri, que eu sabia que não eram manchas de barro. Eu sabia muito bem, de alguma forma, que manchas eram aquelas.

Aquelas manchas que eu acordava mais cedo para limpar antes que a Felicidade acordasse, de manhã. Fazia algum tempo já.

Mas eu fingia que não sabia.

Será que a Felicidade também fingia? Será que ela sabia?

A Dor passou bem do meu lado e eu não ri. Ela passou do meu lado, não viu os risos – pelo menos, não deu sinal daquilo ser alguma coisa diferente da mais normal rotina – e deixou cair uma fita por entre os dedos.

Eu soltei a mão da Felicidade, que parou de rir por um momento de surpresa. Eu olhei para trás, hesitei também. Mas quando doeu, soltar a mão, não tinha mais como negar.

Não tinha mais como, então peguei a fita e fui atrás da Dor. No imediato momento em que me abaixei para pegar a fita, a Felicidade continuou a rir.

De mim, inclusive, dessa vez. O noivado estava rompido e eu era a única que parecia doer com isso.

E não era que a mão que soltou estava doendo, sem corte, e a fita me cortou a outra mão, que sangrava sem doer?

Nesse dia, me casei com a Dor. Nesse dia, sentei ao seu lado, à beira do píer e toquei com os dedos dos pés a Lagoa.

Aquela Lagoa que é cercada e guardada como tesouro ou biblioteca por todas as pessoas do mundo que se casaram com a Dor. Se ainda não viste, caro leitor, acredita, por favor, que não tem outro remédio.

Aliás, não tem remédio, também, pensando bem.

A Felicidade, monogâmica, mas fugaz, continua até hoje a rir dos eternos muitos que se casaram para sempre com a Dor.

Desde esse dia, quando casei com Ela, comecei a desaprender a gostar de riso.

De riso que não se anuncie como mortal antes mesmo de nascer.

Comecei a desaprender de gostar de mentiras acolhedoras.

De verdades que se pretendam sólidas. De solidez que se pretenda base. De julgamentos que se pretendam justos. De sentimentos que não reconheçam suas garras.

De amor que não assuma sua violência.

segunda-feira, setembro 26, 2005

Número, Gênero e Grau 

Quatro figuras femininas.

Ao menos, diz o mundo que são femininas. Diz o mundo que não fazem as coisas de forma a fazer parte das coisas que diz o mundo serem masculinas. Portanto, por isso mesmo, necessário que façam as coisas de forma a fazer parte das coisas que se diz serem femininas.

Bem, eu não sei. Acho muito perigoso isso de classificações, ainda mais assim dicotômicas. Mas diz o mundo que se não são masculinas, portanto, são femininas. Aceitemos esse premissa, que tem a vantagem de facilitar a construção das sentenças, ainda que isso seja no fundo uma profundíssima desvantagem.

Diz o mundo que são quatro, também. Premissa número dois.

Já que vamos com premissas, uso os ordinais e os números, que são verdades só porque se sabem convenções e só.

Como as premissas.

A Primeira chega com a Segunda ao espaço sem ordenação que indica o fim da fila, fila cuja ordenação, por sua vez, indica a condução a outro espaço.

Entram lentamente, de grau em grau.

De degrau a degrau. Prosseguindo lentamente até tornarem-se momentaneamente parte do vazio preso na parede.

O vazio preso na parede que indica a possibilidade de desrespeitar os limites impostos entre espaços.

Encontram-se agora, a Primeira e a Segunda, momentânea e voluntariamente perdidas em um prisma de escuridão e luzes esticadas de cores fortes. O centro é imaginário, em um espaço feito amorfo pela dolosa falta de limites, causada pela falta de visão. O centro imaginário do templo sem paredes da leviandade segura é um octagrama de pedras.

Brancas, cinzas, pretas. Pessoas e pedras, cores e amores, verdades e valores.

Bueno, chega a Terceira. A Primeira sabe dolorosamente muito bem das intenções de soma zero da Segunda. A Segunda sabe que a Primeira sabe, sabe o que ela vai dizer, sabe o que quer dizer aquele olhar.

Aquele olhar de bóia salva vidas atirada a quem pulou do navio. Aquele olhar de escada a quem está na borda do parapeito.

A Segunda sabe disso tudo. Só não sabe o que fazer com a Terceira entrando, decimal, cento e tantos por cento, osmoticamente seus poros adentro.

Nesse ponto do gráfico, faz-se necessário explicar fatos pretéritos. Em épocas anteriores deu-se uma divisão do número “X” na “Terceira” e em “Y”.

Logo após um erro de cálculo, “Segunda” somou-se a “Y”, numa combinação instabilíssima e que quebrou os barímetros ao redor, vindo quase que imediatamente a se redividir de volta nas últimas duas.

Dessa forma, nessa fôrma, poder-se-ia dizer que Segunda e Terceira já estiveram indiretamente somadas, ainda que isso nunca tenha de fato ocorrido. Digamos uma anti-soma.

Ainda mais: a Quarta, que ainda nem tinha entrado na equação, fez-se há tempos da divisão de “Z” na “Quarta” e em outra figura que deixaremos sem nome para simplificar essa simplificação.

Pois então. Temos, até agora, Primeira, Segunda e Terceira num octógono de pedra. Chega a Quarta, fazendo grande estardalhaço e mostrando as cicatrizes frescas da recente divisão, encharcadas ainda de anestésico alcoólico.

Agora, temos quatro, por enquanto, portanto.

Por uma dessas piadas teológicas de geometria espacial que a gente só aprende com biologia, a Segunda e a Terceira, ainda que tivessem sido, no pretérito imperfeito, indiretamente somadas, ou anti-somadas conforme a convenção assumida aqui, no presente e no futuro mais que perfeito calharam de se descobrir absolutamente incompatíveis, quase como moléculas antípodas de química orgânica, opostas ao cúmulo de serem idênticas.

A energia de repulsão gerada pelos pólos recém descobertos quase tão idênticos que absolutamente opostos iniciou uma reação em cadeia que acabou por influir em terceiros e fundir a Terceira com a Quarta, num composto extremamente exotérmico e muito instável.

Quando tudo foi pelos ares, não pude mais continuar a observar e vim parar aqui, sem saber se algum pedaço do escuro ou das luzes esticadas não ficou preso em alguma das figuras que resultaram, qualquer que seja seu número, depois dessa nova equação.

Bueno. Tanto faz.

O fim dos números, todo mundo sabe que não existe. Então, por aproximação, me afasto aqui, e ponto e fim.

(que a verdade que há é sempre assim: alguém diz alguma coisa, com um quê de “que que há!”, põe um ponto e fim.)

sexta-feira, setembro 23, 2005

Burning Home 

Todos os dias, você acorda, vai para a escola, faz dever de casa, come. Essas coisas de se fazer.

No meio de tudo isso a que você já se acostumou e nem precisa olhar, está você. Aquele tipo de familiaridade de nem precisar acender a luz para saber de tudo ao redor.

Para falar a verdade, você nem notava que não se notava. Individualmente, quero dizer. Havia só aquele sentimento delicioso e morno de fazer parte de uma coisa maior. De uma máquina azeitada, de um organismo vivo e eficiente. Tudo se complementava confortavelmente

Uma vida de almofada.

De repente, alguma coisa. Um asterisco. Um alarme. Uma rachadura.

Impressão de cenário. Deja vu.

Um nó na garganta, um rasgo na folha, uma falta de luz.

De repente, tem alguma coisa errada. Você está voltando para casa e simplesmente não consegue afastar essa sensação de que há alguma coisa errada.

Talvez você esteja doente. Aquela sensação de estar realmente doente, de algo que não se sabe o que é.

Não é gripe. Não é verminose. Vasculhas a mente em busca de alguma referência.

Lembrança de ser criança e estar doente de verdade. Ser criança e além do desconforto, o medo. Um medo indefinido e gasoso, um medo fumaça.

Aquele sentimento de não saber o que está acontecendo. Aquele agudo desconforto de não saber como reagir.

Então, um dia, é bem assim que você se sente. Checa a temperatura, em busca de febre. Checa a pele, procurando marcas.

Tudo aterrorizantemente normal.

O desconforto-cobertura, de não saber de onde vem o desconforto.

De repente tem algo muito errado. Você nem janta. Vai direto para a cama, esperando por todos os músculos contraídos que tudo passe no dia seguinte.

Que tudo passe por todos os músculos contraídos.

Faz tanta força para dormir que acaba com uma dor de cabeça infernal. Faz tanta força para dormir que acaba acordando varias vezes. No fim, o corpo está tão cansado de brigar para dormir que, lá para as quatro, desmaia.

Na última vez que acorda, já é tarde.

Você está atrasada. O dia começou, as pessoas começaram, as coisas estão vivas e pulsando. Você ainda nada.

Ainda nada, não. Não exatamente. Ainda alguma coisa errada.

Na verdade, está mais errada que antes. Mais errada ainda do que antes, que não há só um desconforto. O desconforto agora se entranhou, penetrou e fez estalactites por dentro das suas coronárias.

Mas o desconforto de sentir novo o desconforto já não há. O desconforto, de novo.

(Podia até sentir um desconforto de não ter nada de novo, só o desconforto de novo, se tivesse prestado mais atenção.)

Há o medo ainda. Há ainda, mas está diferente e quase palpável. A fumaça tornou-se espessa, úmida, oleosa, sufocante. O medo já não é fumaça azul que ia e vinha, tomando a forma das coisas que ouvia.

Era lama em gás. O medo era lama que se respira.

A respiração está difícil e há pequenos momentos de pânico.

(Pânico!)

As mãos suam e os dedos tentam entrar por dentro das mãos, uns por cima dos outros, empurrando os que estão por baixo. Procuram desesperadamente por uma maçaneta, uma fechadura, como mamíferos filhotes: incapazes, dependentes, desesperados e cegos.

Por fora dos olhos, os espaços estão levemente emoldurados, levemente atrasados, levemente afastados, levemente destacados.

As dimensões todas parecem distorcidas , ampliadas.

Os ângulos estão surrealmente maiores. Os sons chegam como que embaixo d’água: mais baixos, mais claros. O sólido deixa de fazer sentido.

Uma pequena sublimação de gente. As partículas são ejetadas violentamente, arremessadas. O corpo muda instantânea e bruscamente de estado físico.

O físico fica, de repente, muito relativo.

O relativo fica, de repente, muito físico.

De repente, os sentidos caem como chuva e ocupam, como conteúdo, o continente.

Como chuva. Inverso de sentidos, os sentidos como chuva.

Tudo além da pele passa direto por dentro, nada fica. Não se pode mais frear, como um trenó de neve. Desviar é uma aposta.

O chão desaba - não, não é isso.

Não, nada disso: o que desaba são as pernas.

E a impressão de chão.

De repente, sem se saber como, se chega ao destino que até ontem fazia sentido.

Hoje, destino deixou de fazer sentido.

Hoje, um sentido deixou de ser o destino.

Os assentos das cadeiras estão menores e as pernas das cadeiras estão maiores. As paredes verdes se alongam até onde a vista alcança.

As vozes chegam metálicas e ricocheteiam ao redor. Tudo treme levemente. Metalicamente.

Uma vontade de vomitar. Duas vontades de vomitar. Três vontades de vomitar.

Choro convulsivo no banheiro, com as mãos cobrindo a boca, sufocando os gritos e os soluços.

Os azulejos e as louças do banheiro, surdas, observam.

Os azulejos da parede derretem um tantinho, abrem-se pequeníssimas rachaduras e as entranhas vomitam também, pelas pequeníssimas bocas. Os azulejos porejam um sangue já velho, depois de morto: um líquido amarelado e triste.

Ao redor, as coisas, os lugares e as pessoas soam. As bocas todas soam ventríloquas. Os gestos, todos pantomimas. Os remédios, todos panacéias. Os deuses, todos totens.

Quando soa a liberdade, a que nos permitem, a prisão coletiva e voluntária vomita as pessoas e a mais nova criatura barata.

Nenhuma placa mais faz sentido. Nem de ida, nem de vida. Nenhuma linha branca, nem amarela. Nem contínua, nem tracejada.
Andando pelas ruas cenográficas, por entre figurantes e desfigurados, a gente começa a escutar aquele ponto.

Bem baixinho. Ditando o script.

A mão vai coreografadamente surpresa ao bolso da calça. Está lá. Encadernadinho.

Um roteiro. O roteiro. O grande roteiro.

Não se vê mais nada, as cores todas escapam. Um lapso de nada. Branco.

Um lampejo e lá está ele.

O ódio. Lá está ele. Prometendo câmbio para toda aquela tristeza em notas e dor em moedas.

Aponta. Uma grande maquina, daquelas de colocar moedas. Bolinhas de pessoas em suspensão.

O ódio de terno preto que às vezes vira uma dama histérica de vermelho. Raiva.

Os olhos dele. Pintados de lápis verde. Os olhos brilhando cobre.

De repente, todas as paredes são panos de cenário. Todas as palavras são papel. Todas as pessoas são bonecos de ventríloquo.

De repente, tudo é combustível. Tudo é tão fácil e tão frágil.

Tão fácil. De repente, tudo fica irresistivelmente fácil.

De repente, você olha para ele e ele puxa de dentro do paletó um presente reluzente.

Você só volta a si quando percebe que já está em casa.

(Um isqueiro prateado na palma da mão.)

De repente, seu maior medo é de você. De uma em uma hora, você senta no banheiro, segura a vontade de vomitar e repete o mantra, o isqueiro prateado amordaçado em fita branca no bolso da calça.

“Protect me from what I want – Protect me from what I want - Protect me from what I want – Protect me from what I want - Protect me from what I want – Protect me from what I want…”

Aquela linha, tão tênue e tão frágil. Aquela saída, tão tenaz e tão fácil.

(Protect me from what I want)

quinta-feira, setembro 22, 2005

Ponta de Cigarro no Peito 

Porque aí eu percebi que quem vestia a burca, todo dia de manhã, era a menina mesma.

Eu li todas aquelas coisas que a menina escreveu e escondeu. Não quis mostrar para o mundo.

Escondeu que nem menininha que esconde seu biscoito favorito na mochila, não quer que ninguém coma; não quer tanto, tanto, que nem ela come.

Fica com fome, comendo a fome o recreio inteiro, se regozijando com a fome dos outros, com o não cheiro do que é seu na boca alheia.

Todo dia de manhã, essa menina baixa a cabeça e veste a burca.

Se enterra. Tecido de chumbo e uma florzinha branca, fúnebre, cínica. Disfarce réptil e arapuca transcendental.

Que raiva. Que raiva de tudo, que raiva dela, até. Não tendo mais do que sentir raiva, sinto raiva de mim também.

Afinal, se todo mundo merece, por que não eu também?

Por quê? Porque, pergunta cretina que se faz de si mesma, porque eu li todas aquelas coisas que alguma menininha tola escreveu e escondeu.

Uma menininha que já morreu.

Porque eu quis chorar e rir e correr por aí até cair no chão. Porque eu fiquei olhando para coisas sem foco a tarde toda, quando as pessoas precisaram de mim.

Eu não ajudei, eu não era nada. Não se pode precisar de um ninguém, de alguém que ainda não é. Que não está em lugar nenhum, que não é. Nada. Não se pode precisar de nada.

Não se pode precisar de nada.

Não se pode precisar de nada.

Porque eu escrevi em três segundos tantas palavras sobre querer explodir por debaixo de todas as coisas do mundo.

Porque de alguma forma estúpida, correm fios de diferentes espessuras por entre todas as coisas do mundo, mas a gente nunca vê nenhum. Quando muito, vê um, mas o esforço de ver um deles esgota a visão e a gente não vai ver nunca mesmo que desenho faz a rede.

E tinha. Tinha. Sempre teve. Eu, ainda de terço nas mãos, ainda de joelhos diante de uma beleza que não existiu fora de mim: eu rezei por infâncias inteiras, rezei para que houvesse em algum lugar uma linha paralela à linha que me partia. Em mil metades.

Quer coisa mais intransferível que perfeição? Pessoal e intransferível. Indiscutível. Ponta da ponta da ponta da ponta do gosto.

Pois bem. Que raiva. A linha, a burca. Era tudo o mesmo. RRRRaiva, daquela que a gente nem abre a boca pra dizer. Se abrir a boca, ela rasga.

Ela, sem prénome e sem pronome, fingindo de ninguém, fingindo de pessoa-poste, de pessoa-quina, pegou através do tempo o fio que eu rezava, que eu queria, que eu morria todo dia, enrolou e escondeu. Debaixo da burca que todas as menininhas recebem todos os dias pela manhã, junto com as escovas de dentes.

O pior de tudo é que não dá nem para dizer que ela fez de propósito. Que foi culpa dela. Não tenho mais essas bengalas, polidinhas e brilhantes. Não tenho mais essas mentiras que mantém as pessoas felizes.

No fim, não existe nada. Nem tudo. Nem alguma coisa. Tem é dor. Dores tantas que até dói.

No fim, eu queria doer mais. Eu quero doer mais e mais, até ficar dormente, para doer mais ainda. No fim, eu queria era ter muita vontade mesmo de ficar com o violão no colo até inventar a música mais bonita que eu poderia fazer. Nem que seja na base da análise combinatória, nem que seja até sangrar. Nem que seja parnasiana.

Fatorial de sete cabe na minha projeção médica de espectativa de vida.

Eu quero fazer o mundo chorar. Eu quero ver todo mundo chorando. Eu quero ver as pessoas chorando e gritando e puxando os cabelos.

Eu quero que todas as luzes se apaguem. Ou melhor, que as luzes queimem. Todas, todo mundo.

Eu quero que o mundo rache no meio e faça um barulho tão tremendo que todo mundo cale a boca ao mesmo tempo e saia para ver o que aconteceu. Eu quero que o mundo pare. Aberto.

Eu quero que todo mundo olhe em volta. Ao mesmo tempo. Que todo mundo olhe e veja as pessoas todas olhando também.

Eu quero arrancar as burcas todas em praça pública. Em rede nacional.

Eu quero que esse reator que tem dentro de mim exploda logo de uma vez e pare de ficar no limiar do limite das limitações das coisas.

Eu queria dizer pra todo mundo, gargalhando histérica e voando numa mariposa gigante, que não existe nada, nenhuma das coisas que nos mantém vivos e felizes, nada disso existe.

Eu queria ver a cara das pessoas quando eu passasse num telão uns gráficos que provem que amor não existe, senão doses proporcionais de projeção, invenção, comodismo, narcisismo. Com gelo e limão.

Que, no fim, a dor é que é o sentimento mais bonito de todas as coisas que existem, da matéria e da anti-matéria, da energia e da entropia.

Eu queria mesmo era eu ser a bomba que estourasse por baixo do mundo e morresse estourando tudo, parando coisas e movendo pessoas. Jogando todas elas para o alto.

Eu queria morrer doendo mais, muito mais do que esse meu corpo estúpido agüenta.

Eu queria passar a vida toda trancada numa cabana, escrevendo com sangue e bile e pele os gráficos que dissessem todas as verdades mais verdadeiras do mundo, que desmentissem as mentiras todas, nuas, verdadeiras.

Ah, eu queria ver o pandemônio! Do alto, da minha mariposa gigante, que ia bater as asas tão rápido que eu ia virar uma mancha escura contra um céu apocalíptico.

Eu ia ficar invisível e causa de tudo. Invisível como todas as pequenas verdadeiras causas. De tudo.

Depois, ela - a mariposa - ia subir, subir, subir, até que meu corpo quase não suportasse mais as forças cósmicas que são tão diferentes daqui de baixo... e então descer, relampejante, vermelha, em fogo, até estourar por baixo do mundo.

Eu queria era doer muito mais, no fim das contas. Doer mais do que cabe em mim, do que cabe em todas as pessoas juntas, mais do que suporta o ecossistema. Mais do que deixa esse deus covarde que as pessoas inventam todo dia.

Eu queria a dor maior que se pode conceber, uma dor que nos liberte desse medo de doer. Eu queria o universo todo incandescendo.

Eu li tudo o que a menininha escreveu e escondeu. Agora, eu quero morrer. Estourando por baixo de tudo no mundo.

Eu. Que só restasse a única mentira que a gente precisa para doer: eu.

terça-feira, setembro 20, 2005

Desde Sempre, Agora Ainda e Amanhã Também 

Tudo tão pequeno. Diabo de mundo, onde tudo é tão pequeno.

Hoje a lua está lá, cheia de tudo isso. Linda, ainda assim. Ainda que ela seja linda quase todos os dias, continua linda, por algum motivo inefável.

Hoje, ela está linda, ainda mais uma vez. A estrada se curva: às coisas dos homens e às coisas do mundo.

Mas também se curva, como eu, a estrada: curva-se a ela. Ainda linda.

Pairando sobre todas as coisas pequenas, enorme e linda.

Tem noites em que ela continua tão linda que até as coisas querem suspirar.

Sabe? Eu sei que você sabe. Aqueles dias em que a lua continua tão linda que chega a ter nome.

Aquele nome, eu sei que você sabe qual, caro leitor se fingindo blasé. Aquele nome, que a gente sussurra porque tem medo de dizer em voz alta.

E o nome nos sai boca afora e foge, tentando alcançar a lua. Se chega, não dá pra saber. A gente nunca sabe se chega.

Mas a lua continua linda, de uma forma ou de outra.

Aqui?

Ai, nesse mundo, tudo continua muito pequeno.

_S.P., 21.08.05

segunda-feira, setembro 19, 2005

Sine Cera 

Você escreveu para mim, flor, e me pediu para ser sincera.

Eu prometi que sim, sem ter o cuidado que eu devia ter tido para ser fiel ao quanto gosto da sua figurinha. Sem ter cuidado de te perguntar o que é que você queria dizer com ser sincera.

Agora, não sei. Não sei o que é ser sincera como você quer que eu seja. Não sei se ser sincera é dizer dos meus impulsos, dos meus pulsos, das minhas compulsões, das minha reações aos meus impulsos ou do que sobra dos meus pulsos e impulsos depois de interrompidos pelas coisas do mundo.

Esqueci de perguntar e agora não sei. E agora? Não sei.

(olha só o papel rasgado logo ali onde eu não sei: se a gente tomasse o acaso como culpa inconsciente e fizesse do aleatório poesia... Não podia? A gente não podia?)

Recebi agorinha a sua mensagem dita instantânea, aquela que você enviou ontem à noite, em resposta à que eu enviei na hora do almoço de ontem.

Já viu que instantâneo é um jeito de dizer só mais rápido que antes?

Engraçado, isso das palavras mudarem de sentido, antes mesmo da gente conseguir chegar a um consenso sobre o exato sentido delas. Esse jeito de partícula que as palavras têm, de só ser alguma coisa que a gente possa determinar, mesmo, quando se juntam as palavras em frases e as partículas em moléculas. De só serem alguma coisa enquanto estiverem partes de um conjunto qualquer.

Esse jeito engraçado das coisas serem só quando estão.

Vai ver é por isso que os anglo-saxões têm tão pouca paciência com os povos que acham que têm certeza que existe mesmo uma linha de fronteira e uma alfândega entre o ser e o estar.

Eu, dando aula para um americano: “Ser? Ser é um estar bem grande.”

Assim: quando você tiver certeza daquele estar, ou seja, quando parar de se preocupar com a relatividade daquele estar, ele vira um ser.

Parmônides e Heráclito, façam o favor de desculpar a simplificação.

(olha lá o buraco no papel logo antes da certeza. O buraco, de novo, só para me lembrar que eu não acredito mais nisso e que é uma sujeira ficar falando assim de coisas em que a gente nem acredita mais. Assim, sem pudor, como se nada. Como se o outro fosse meio idiota e digno de pena e condescendência verde-oliva.)

Mas agora chegou a sua mensagem instantânea. Agora, que eu já te disse o que penso de tudo isso de as coisas serem instantâneas, que lembrei quando chegou a sua mensagem, agora vamos falar da mensagem e retomar aquilo de sinceridade.

Você, acho, quis me testar a sinceridade prometida. Acho isso porque você escreveu assim: “Me diga, de verdade, o que você está pensando agora.” Reforçou que era para eu dizer o que quer que fosse, de verdade.

Me deu uma aflição. Não quero mentir, mas assim é quase que impossível. Tenho que te dar um monte de respostas, para de repente te dar a resposta que você queria e eu nem sei se ainda quer.

Isso tudo por causa desse negócio de instantâneos.

A resposta que seja aquela, com artigo definido e letra maiúscula, marcada com um clipe de papel para a gente não perder no meio das outras, vai depender do que você pretenda que seja “estar pensando” e “agora”.

(Suspiro). Quanta coisa para analisar. Aquela agonia de não saber por onde começar a arrumar o quarto.

Bem, há que começar. Vamos, ânimo de começar.

Se estar pensando agora for o que me passar pelos nervos e eu tomar ciência, o mais perto do instantâneo que eu consiga conceber, de verdade, eu estava repetindo as suas palavras na minha cabeça.

Eu repetia as suas palavras – que já não eram suas, portanto – na minha cabeça – que já não era exatamente a minha, portanto - enquanto eu lia.

Outro dia, só, foi que eu percebi que a gente lê roubando as palavras. Repetindo as palavras, com as nossas palavras, por dentro. Juro para ti. Tratei de usar o método científico, para tentar me certificar: li sem repetir. Não é ler. A gente passa os olhos pelas linhas e não faz sentido algum. Como ler numa língua que não se conhece.

Daria para ousar dizer que conhecer outra língua é senti-la de acordo com a nossa, traduzindo a outra idéia pelas marcas que deixa na primeira.

Ou assim eu tive a impressão, quando me deixaram essas marcas palavras quaisquer dessa língua que eu nunca tinha questionado ser a minha.

A gente fica com o que lê nas marcas que fez o texto na gente. Entende? Não necessariamente o que a gente lê veio nas marcas. Não necessariamente o que veio saiu nas marcas. E, por sua vez, não necessariamente o que saiu, veio. Por fim, o que se quis sair não necessariamente saiu.

Às vezes, o que veio não veio. Quero dizer, vir, propriamente, veio. Mas não era o que se pretendeu ter vindo.

Bom. Podia ser essa, a resposta com letra maiúscula. Mas não sinto que seja isso o que você queria dizer, quando perguntou aquilo. Não sinto que era isso o que você queria que eu entendesse, quando emitiu o pensamento. Não acho que era isso o que eu deveria estar respondendo ao que eu acho que você quer saber.

Estou cansando. E pensando cá com os meus botões que o melhor meio de responder a essa pergunta talmúdica é começar a fazer camadas de respostas que eu não pretenda terminar.

Bem. Segunda camada: estou com fome, mas não quero ir comer, que prefiro ficar escrevendo isso aqui.

Terceira camada: estou pensando que deveria estar atualizando um lista de pesquisadores para o meu chefe, mas prefiro escrever isso aqui.

Quarta camada: Como é que eu vou saber o que estou sentindo, se saber está para sentir assim como o ser está para o estar, e eu desaprendi a ter certeza?

Quinta: acho que o jeito mais honesto de responder a essa sua pergunta é te mostrar o quão mais próximo eu consigo colocar o que eu sinto ser a resposta do que sentes ser a sua pergunta.

Sexta camada.

Eu queria, muito mesmo, um balanço de jardim. Aquele sol úmido de tarde em banco de jardim. Uma sombra de árvore, recortando a luz em losangos.

Vestidos leves e pés descalços, nós duas. Distância suficiente das pessoas para podermos nos despir da preocupação de sermos duas mulheres com leves vestidos. Distância suficiente para não precisarmos nos preocupar que nossos vestidos, leves, deixem-se levar pela brisa e pela falta de preocupação das pernas e da grama.

Distância suficiente para proteger as pessoas dos nossos vestidos despreocupados, para não lhes ofender as presunções nem lhes abalar a solidez de protocolos de que necessitam tão ferozmente.

Não queremos abalar nada. Só queremos não nos preocupar em não abalar.

Só vestidos leves e pés descalços, grama e balanço de jardim, sol úmido e sombra entrecortada, dois livros de poesia e a ponta do seu cabelo entre os meus dedos.

Enquanto eu brincava com as pontas do seu cabelo, tentando entender a língua das voltinhas e reunir os fios aos seus irmãos, estava também fazendo força para não rir da cara que você fazia.

Que você folheava o seu livro de poesia com uma certa raiva que te aparecia na testa. Jogávamos um jogo bobo, de achar a poesia mais bonita.

Tento não deixar o riso sair, porque eu acho que você ia achar que eu estava me divertindo por ganhar, ou mesmo rindo da sua raiva. E embora ganhar e a sua cara de raiva tenham sempre uma certa graça irresistível, não era exatamente isso que estava me fazendo ter aquela vontade doida de rir.

A gente nunca gosta que cartomanciem significados nos nossos sintomas.

Eu estava rindo era da situação, que era bonitinha, mas um tantinho ridícula, com quando uma criança se assusta com bolha de sabão.

Era um tanto ridícula porque você ia ficando com raiva de perder, sem notar que quem decidiu que estava perdendo tinha sido você mesma.

Na minha cabeça, qualquer um dos que você tinha lido tinha bem mais graça, naquele balanço e os pés na grama, um livro de poesia em uma mão e as voltinhas do seu cabelo na outra.

Tudo isso derrotava humilhantemente qualquer minha tentativa de poesia. Na minha cabeça, quem vencia era você, irritada que estava de perder.

...

Uma mosca batendo contra o vidro da janela me traz de volta para fora da resposta. Olho para a resposta e para a pergunta, indo e voltando para comparar.

Respondi?

quinta-feira, setembro 15, 2005

Linda Ainda Mas Mais Linda Ainda 

Então. Era uma vez uma linda menininha.

Daquele tipo mais irritante de linda menininha, tão linda mas tão linda que irrita.

Daquele tipo mais irritante de linda menininha: loirinha, olhinhos, pontinhas de pezinhos, toda risinhos e dedinhos mindinhos.

E como era feliz, a linda menininha! Feliz como só as lindinhas menininhas podem ser, auto-confiante como só os sádicos. Sem ser. Afinal, era uma linda menininha.

Assim vivia a linda menininha. Feliz.

Um dia, um dia mais belo ainda do que a linda menininha, ela descobriu que a parede estava ligeiramente torta. E a estante também.

E a mesinha. Até o teto estava ligeiramente torto. “Que estranho!”, pensou divertida a linda menininha.

Como isso de estranho só é divertido por um período curtíssimo de tempo sempre, isso de pensar sempre desfeliciza um pouquinho também.

Como sempre que desfelicizava um pouquinho, foi a linda menininha ao espelhão.

O espelhão também estava tortinho. Mas, ai! A imagem, não.

(ou não).

Foi aí que ela percebeu: a tortinha não era a paredinha, nem a portinha, nem a mesinha! A tortinha era elinha!

Que desespero! Que cataclisma! Vocês nem podem imaginar o peso que carrega um linda menininha. Na verdade, nem mesmo a linda menininha sabe o peso que carrega, até que enverga.

Pois tanto peso, para nada! (ou assim se pensava)

Lá estava agora a linda menininha, agora só menininha, totalmente tortinha do peso se ser – ou de ter sido, ou de não mais ser, vai saber - a linda menininha.

Chorava tanto, a linda menininha, que sua mãezinha veio ver o que se passava. Não ajudou muitinho, a mãezinha, ao olhar assustadésima para a torta menininha. Desesperadas, as duas corriam pelo quarto, sacudindo os braços e berrando seus berros de menininha e mãezinha, respectivamente.

A mãezinha não pôde suportar ver a filhinha tão tristinha. Saiu, falou com o mago da corte e voltou, rapidíssimamente, com a solução.

“É para o seu bem, menininha!” disse o Mago da Corte. A menininha não levou muita fé naquilo não, mas quando ia pensar em correr escadas abaixo, viu a Mamãezinha Rainha e o Papaizinho Rei.

Os guardas de penacho verde na cabeça levaram a menininha para o ferreiro da corte. Os guardas de penacho verde na cabeça trouxeram de volta a menininha do ferreiro da corte. Os guardas de penacho verde na cabeça colocaram a menininha dentro de uma enorme armadura de desentortar menininha.

Ou não.

A vida tem dessas coisas. Essas coisas, que por um momento parecem infinitas e enormes, depois são só coisinhas. E coisas que parecem tão simples e que depois viram um mundo. Coisas tão ridículas que parecem misteriosas de se ver de longe e coisas tão misteriosas que parecem ridículas de se ver de longe.

A questão toda é que a gente sempre faz tudo achando que um ponto é a esfera toda, acreditando mesmo que verdade existe e que intenção é o que conta.

Lá estava a menininha. E essas coisas do mundo, todas.

E a armadura de endireitar menininha fez a menininha cabisbaixa. De andar cabisbaixa, de repente a menininha passou a ver um monte de coisas que andam por baixo da linha da vista.

Algumas coisas que andam por baixo da linha da vista são muito cruéis de se ver.

E a crueldade, camada fina de óleo que recobria as coisas por baixo da linha da vista, escorria toda no mundo torto e ia parar no canto.

No canto de óleo, nasceu uma dessas plantas que vão se apoiando até derrubar o apoio. Uma dessas plantas que começam simbiontes e depois tornam-se parasitas e depois tornam-se tão legítimas e integrantes que sustentam todo o resto. Uma dessas plantas que se chama por aí só de tristeza.

Acontece que o aço com o óleo e a liga da planta armaram uma fortaleza torta para proteger a menininha da destortice do mundo.

Ou não.

De tão forte e tão triste, fez-se da menininha uma mulher.

Ainda mais linda do que fora um dia menininha, se quer saber. Mas tudo é questão de ponto de vista e acreditar.

Andava cabisbaixa, ainda, por dentro da armadura orgânica, então não se sabia linda ainda. E não se saber linda a fazia mil vezes mais linda ainda do que a ex-beleza finda.

A menininha tinha virado mulher, mas não sabia disso ainda. Tão mulher que não cabia mais na armadura de aço, nem na armadura-de-ter-espaço. Mas, ai, que desgraça! Andava cabisbaixa e não se via. Se via ainda ex-linda-menininha.

Saísse ela da armadura, o mundo viraria de pernas para o ar. Novamente. Novamente, ela ia levantar o novo, como novo, de novo. Novamente, ia passar uma banda no norte e levantar o sul pelas mãos.

Mas não saía, que não sabia. Não sabia ela, não queria saber o mundo e quem sabia, tinha raiva.

Tinha raiva de saber ver mais perto, mas longe. De ouvir o mundo rir, que não sabia da sua própria feiúra e do óleo que poreja em todas as coisas abaixo da linha dos olhos. De ouvir a linda mulher não-chorar. Tão linda. Muito mais linda ainda, mil vezes mais linda ainda do que a ex-beleza finda da menininha linda.

Raiva dá quando se sabe que gosto tem o sangue e que gosto tem o ferro. Quando se sabe o que se vê por dentro do aço e do orgânico-de-pretenso-espaço.

Quem sabia, tinha raiva. Raiva de não conseguir afiar o olhar e as palavras em algo que perfurasse aquilo tudo de tanto nada. Algo que rasgasse, que abrisse, que virasse do avesso.

Assim viveu sua quase vida toda, a mulher mais linda que o mundo não viu. Sem saber que era linda, mais linda ainda, continuava a se ver menininha. Continuava cabisbaixa, cegueira conceitual e epistemológica de só ver a beleza finda.
Continuava a esperar a volta da menininha. Menininha finda, ainda que um dia tenha mesmo sido linda.

O mundo, esse mundo imundo, queria o que já se sabia. Beleza dura é mais fácil de mastigar e engolir, lubrificado o mundo de óleo.

Quem tinha raiva, acabava tendo raiva só de saber e de só saber. E de não saber. Se só saber, e saber só, dá tanta raiva, de que adianta o saber?

De que adianta só saber, se saber só, só isso, se só afasta a neblina e se vê o fim? E só?

Raiva de querer e não poder mudar o fluxo do mundo empurrando tudo para o lado errado. Raiva de querer e não poder fazer ver a relatividade dos eixos e das linhas imaginárias. Raiva de querer e não saber aquele truque de abrir, aquele truque de fazer levitarem as coisas. Raiva de querer e não saber enfiar a Averdade goela abaixo dos ávidos por verdades verdadeiramente verdadeiras.

Raiva de não saber querer explodir com tudo pelos ares. Com o mundo todo, revirar todos os eixos e misturar as linhas em nós.

segunda-feira, setembro 12, 2005

Memento Mori - Pérolas, Grãos de Areia, Homens de Palha, Incêndios, Lembranças e Mortes 

Eu fui andando hoje para a faculdade, que segunda-feira não tem aula no primeiro tempo.

Na segunda, o primeiro é depois, então tenho tempo de andar alguma coisa.

Fui andando e tocou Gram no meu ouvido. Não sei se foi por causa do show dos Hermanos ontem, mas estava de alma lavada.

Um amigo esse fim de semana me pegou em flagrante cantando uma musiquinha daquelas pena-na-brisa e me disse que eu era uma florzinha.

Eu odiava isso de florzinha. Mas fazer o quê? Melhor não pretender ser o que não sou. Estou florzinha. Assumida. Saí da estufa.

Hoje de manhã, por exemplo. Talvez porque chorei tanto e tão desavergonhadamente a noite toda no meio de oito mil pessoas, eu estava uma florzinha. Chorar na frente de uma pessoa já é assustador o bastante, imagina oito mil.

Caminhando pelo meio fio, tocou Gram no meu ouvido. Tocou Gram, aquela assim: “voltei pra te ver, mas sem te inventar / pra saber se vou chorar”.

Tudo de volta. Passou na minha cabeça tudo de volta, quando eu percebi que o Gram que eu andava ouvindo era diferente do que ouvia naquela época da minha vida que leva o seu nome.

Aquelas duas semanas da minha vida. Duas semanas, entre o querer-explodir e o querer-flutuar. Querer explodir por baixo de todas as coisas do mundo para incandescer tudo o que me fosse sólido, para me vingar da solidez que o mundo outorgava e me obrigava a engolir com vitamina C. No fim, querer flutuar para me permitir a liquidez sem continente, baumaniana e budista.

(suspiro) Aquelas duas semanas da minha vida que levam o seu nome.

E por outro lado, por exemplo, tantos anos sob uma tabuletinha amarelada dizendo “Escola”, com letra corrida. Engraçado. De repente, duas medidas tão diferentes são a mesmíssima coisa. De novo essa brincadeira de unidade.

Andei ouvindo Gram, hoje pela manhã. Tão engraçado, isso tudo. Tão diferente, a mesma coisa.

E uma coisa muito metalinguisticamente engraçada, isso de ser tão engraçado lembrar alguma coisa qualquer que já foi triste.

Assim como é tão bonito isso de ser tão triste lembrar de alguma coisa que já foi muito bonita.

Achando que era a primeira vez que tinha me apaixonado, perdi o equilíbrio. Como quando a gente está andando com o guidon torto e só cai quando percebe que o guidon está torto. Ou melhor, quando vê o guion torto e acha que não consegue andar com o guidon torto. Besteira. A gente estava andando com o guidon torto até notar, não estava?

Às vezes a gente machuca o pé e continua andando. Só pára quando olha para a sola do pé e resolve decidir que não vai agüentar andar.

Achando que era a primeira vez, só porque era maior do que tudo o que eu lembrava, não soube ter calma e explodi. Não soube esperar para perceber que eu já estava andando com o guidon torto. Não soube esperar por mim mesma e explodi. Explodi em cima de um espantalho listrado.

Que me apaixonei loucamente por um lindo espantalho, vestido em listras. Um espantalho levemente baseado em fatos reais, preenchido com a madeira de uma vida inteira apontando lápis.

Ainda assim, ainda que fosse madeira de uma vida inteira, era madeira e só madeira.

(nem estrela, só madeira)

E a besteira de querer preencher pele com lascas de madeira. Querer que um terno de listras cheio de madeira pudesse vir a ser uma pessoa.

Todo mundo sabe que mágica é só um processo orgânico ainda sem nome com radicais em alguma língua morta, como “partenogênese” ou “amor”. Nada de pessoas saindo de madeira. Madeira morta. Ainda que madeira que de alguma forma viva através de quem segura o lápis, ainda assim nesse sentido morta.

Totem. Espantalho listrado, meu amor: você era um totem que eu fiz pra mim.

Um totem onde eu depositei minha ingenuidade e infantilidade. Onde eu guardei minha parte estúpida e inconseqüente. Onde eu me apoiei quando precisei sucumbir, quando precisei da deliciosa fraqueza de esquecer a minha responsabilidade.

Hoje, eu olho e vejo um totem.

Um totem, da cinza das listras. O meu amor, imaginário, inventado: o espantalho de preto e branco em segundos se desfez em cinza, deparado com o rubro do fogo do mundo. O rubro do fogo do mundo era muito mais forte que o meu sangue diluído em leite, com que eu alimentei o homem de palha, esperando que um dia fosse forte.

Que um dia fosse forte o suficiente para ser fora de mim. Para ser por si, para não estar por mim.

Engraçado como amamentamos sonhos tão irreais, só por necessidade de nos reproduzirmos em algum lugar.

Mas o fogo do mundo encontrou na madeira nada mais do que madeira.

Meu espantalho, meu amor, era só o que é um espantalho, no fim das contas: um homem de palha.

E as listras que me encantaram além do que eu pude suportar em mim... Preto e branco, no fim, reduzidos a cinza.

Preto e branco, que tolice a minha. Eram tons de cinza. E eu, acreditando como tudo o que já desacreditei, a dentadas.

Engraçado como a gente tem sempre um jeito de se derrotar. De se fazer vencido e subjugado.

Assustadora, a felicidade que dá.

Mas não. Era tudo só madeira e ilusão de ótica.

Que Gram estava tocando, agora, nos meus ouvidos e eu soube quando vi as cinzas que tinha inventado tudo tão real só para fugir do real que eu andava inventando.

Pensei que nunca quis comprar aliança de pedra lapidada para oferecer ao meu espantalho. Que acho muito triste, isso do querer lapidar. Eu sempre quis mandar fazer uma aliança com um grão de areia incrustado.

Tão lindo. Primeiro, porque tão pequeno e ainda assim lindo, nada de brilhos berrantes. Beleza sutil, daquela que só quem já viu é que vê. Depois, porque bonito assim como é, lapidado pelo próprio trajeto mar adentro.

E depois, ainda, por não se pretender o valor da matéria maior que o do símbolo. Aliança de grão de areia, moldado por si mesmo, pelos caminhos que ele mesmo percorreu pelo mundo.

Porque de tão inúmeros grãos de areia, cada grão é um grão. Encantamo-nos com a unicidade de haver um único grão de areia de cada vez, ainda que existam tantos que só se possa falar deles em ordem de grandeza.

Diamantes são raros mas são todos iguais.

Muito feio, isso de achar lindo mandar lapidar o outro.

Mas mesmo assim, nunca podia dar certo. Ainda assim, ainda que aliança de grão de areia, o noivo era um espantalho.

Espantalho não coloca a própria aliança. Acabou que quem colocou fui eu, sendo aquilo que em criança eu achava tão bobo: meu próprio pretenso interlocutor, em verdade marionete.

Mas o mundo veio e o fogo do mundo rompeu o devaneio. Madeira é só madeira.

Do homem de palha, ficou só uma lembrança que dói o meu erro. Só.

Enxergo hoje o mundo das coisas, o mundo do fogo. Acho que preciso menos de palha, hoje. Acho que consigo aceitar que lascas de madeira, saindo do lápis, são só lascas de madeira. E que o lápis, saído da mão é só lápis.

Que amor, saído de mim, não é nada, se não acha ninho em outro peito.

(Já dizia o filme: de que serve o amor só em pensamento?)

E a Inspiração-do-espantalho, por sua vez, perdida na tradução esquizofrênica disso tudo, acha que eu sou assim como uma pérola.

Meu coração, de verdade, é bem verdade, eu escondi como esconde a ostra. Esconde a sua ferida, causada pelo acaso de um grão de areia contra seu corpo fraco demais para o mundo, com camadas de humores até que se faça da soma grão de areia do mundo mais ferida, uma pérola.

Não sou pérola. Meu coração é que está guardado dentro de uma, que meu coração é a sempre a causa da minha própria ferida, como uma presença do mundo que teima em esquecer que se fere com tudo.

Mas não sou a pérola. Tem a ferida, a carne, a casca. Tem a dor e a cor, mãe-de-pérola.

E posso ser bem estúpida, querendo e pretendendo emperolizar grãos de areia em alianças.

Pois bem. Memento Mori.

Lembranças da morte do espantalho me permitiram, pela primeira vez, olhar para a Inspiração-de-espantalho.

Nem vai, nem volta, nem janela de um lado, nem corredor em volta. Nem a janela de um lado, nem a do outro.

Pode ficar. Pode ficar você, do jeito que você for, de verdade.

Do espantalho em mim, só as cinzas. Da pérola em que te prendi, só o pó.

(Olha só: os dois, no fim, são da mesma cor. Constante. Número Pi: descobri. Não erro mais.)

sexta-feira, setembro 09, 2005

A voz do povo é a voz de deus 

Marido ciumento para a mulher que quer sair sozinha:
_Formiga quando quer voar cria asa!
E a mulher responde, saindo:
_É, mas vaca presa também lambe-se toda.

quinta-feira, setembro 08, 2005

Base dos Olhos 

Que loucura.

Você passa a vida inteira achando que é louca, que enxerga coisas onde elas não existem. Você acha que só você sente algumas coisas - alucinações, alucinações! - aquela síndrome de Voyager, aquele complexo de rádio pirata.

E o resto do mundo rindo da sua cara quando você resolve mesmo estampar numa camiseta do Che Guevara que quem vai até a vitória sempre perde a glória de chorar.

Mas a gente sucumbe, eventualmente. Nem todo o narcisismo do mundo sustenta seu arquétipo de Prometeu. Um dia, vc dobra os joelhos. Rangendo os dentes, rasgando as fibras, preferindo a morte - mas nem sempre a escolha da morte nos é dada.

E você ajoelha, a cabeça mais baixa que chão, aquela dor de vergonha. Você sucumbe, sabe, eventualmente você sucumbe ao mundo.

Esconde tudo, joga todos aqueles brinquedos e enfeites no fundo do armário e jura que cresceu. Pinta a parede de tons sóbrios, troca as cortinas por persianas. Encasaca e encasca.

Põe uma gravata.

E vai ficando cada dia mais duro, cada dia mais uma camada de base. Mas não dá pra passar base nos olhos, sabe? Todo mundo errado, de achar que Édipo arrancou os olhos por culpa.

Aquele guizo no fundo da sua cabeça: o rei está nu, o rei está nu, o rei está nu. Um Galileuzinho sussurra o tempo todo: "e pur si muove".

Um dia você agarra aquele violador costumaz e o joga no chão. Trancados os dois por dentro do um, não há fuga: olha o corte que você me deu.

Olha o corte que você me deu!

Desviar o olhar não dá, estamos os dois em um. Te provo o quanto de mim tem em ti. O meu sangue tem gosto de você. E eu misturo os pronomes de tratamento de propósito, pois sim.

Olha o corte que você me deu. Olha em você o porquê dos cortes que você me dá.

Todas as minhas camadas de defesa, que você abriu a navalha, sangrando no chão: de alguma forma irônica abrem as tuas. Admitas que gostas de melodramas. Que choras com o destino das mulheres engrilhoadas. Perdeste o hímen do mentiroso profissional pra mim, nem adianta mais.

Aquela parte de ti que você esconde tão psicoticamente, aquela que eu sempre amei. Desde o primeiro dia em que por entre navalhas e agulhas, tua cabeça pousou no meu colo. E pur si muove.

O rei está nu. O rei está nu, deitado ao meu lado. O rei também chora às vezes, embora eu nunca tenha podido provar antes que o gosto de sal que eu sentia não vinha da minha própria pele.

Não és rei pela roupa, sabes? Desça já das tamancas, que nem elas há.

Rasga logo esse manto, diabos! Só entre nós: nós sempre soubemos que manto nenhum há.

Ficas sempre Judi Garland correndo até a beiradinha do cenário, fazendo crer que vais estrada dos tijolos amarelos acima.

Não há estrada. No hay banda. E pur si muove.

Sejas ridículo, que sois ridículo. Que somos ridículos os dois, ainda mais ridículos que os ridículos que fingimos não ser, por nos fingirmos menos ridículos do que somos.

No fim, quem perde senão tu?

Sejas ridículo uma só vez na vida: uma só vez, e nunca mais. Uma vez só, de cada vez. Cada vez a última vez.

Patético. Melodramático mexicano. Rasgado. Primário. Ignorante e estúpido. De verdade.

Se não uma vez, serás muitas mais, que todos os segundos em que não fores ridículo estarás sendo ridículo.

Nunca houve mesmo razão pra ouvir aquela música.

Fecha esses olhos! Olha só: não há, nem nunca haverá razão para ouvir música nenhuma: e essa é a questão!

Essa sim é a questão! Essa é a questão, que essa é a resposta!

Hamlet e os sofistas ao lado, boquiabertos e nus, olham-nos. Nus.

(eu e você sempre estivemos).

terça-feira, setembro 06, 2005

Smoking Round Mirrors 

Me. My gun.
Not me. And my gun.
The gun. Neither me nor what I was before it.
It’s on my lap, sleeping gently.
As innocent as I don’t remember being.
Reminds me brutally of everything I never was.

Never thought about how much of taste depends on smelling. Maybe the opposite is also true. I guess the opposite tends to be too often also true.

Right now there is salt in the air. I can taste it in the air that I breathe.

Where does the line between tasting and smelling lies? What if it’s all the same, actually?

When people get cold, don’t they stop tasting? Maybe it’s a circle.

The gun in my lap grew cold again. This small volcano I can command. More.
It shines back the light and retains energy as only metals and anger can.
My gun is not angry and my anger is not my gun.
But somehow they think together. Somehow, they came together.
Somehow, when they come together, people die both sides of the trigger.

Never thought about how waves move. Water moves in patterns like circles. No, much more complicated than circles. Spirals, maybe.

Circles. People say they symbolize perfection. I agree. They can simplify everything that happens into something clean, small and understandable.

Circles and perfection. Just the same.

The closer you look, the less the circle looks round.

The gun in my lap moves in a circle around the Earth, around the Sun, around the centre of galaxy.
The electrons move in circles around the protons and neutrons, and thus the gun stands still on my lap.
Still on my lap.
Still on, my lap.

I had this impression that my head was not bond by my body anymore. I was a machine. An electrode. A chip.

Never again a sheep.

I could have any eyes I wanted, how many eyes I wanted.

Billions of particles of men though History got together in a special sequence and finally we got free of our worshiping. Free of death, by freedom of life.

And I had a gun on my lap that was killing me because it didn’t have a self of its own.
It needed me to live, and lived through my death only.
A metallic virus, that entered me when my guards were down.

All guards were down. Now.

Maybe light also moves in a spiral. Maybe that’s why we always need two eyes to calculate where things are.

Maybe that’s why it always takes two, to calculate the positions. To calculate people, things and time. Maybe that’s why it always takes two.

Maybe that’s why the closer we get to know position, the further we get from knowing trajectory.

Maybe it’s not such a bizarre thing that we reason better in traffic. Movement and reason.

Maybe we reason better as we go.

The gun on my lap has no reason.
The gun on my lap sits on top of the circles my parents made. They, for their turn, are just sitting on top of the circles their parents made.
Maybe a circle is just a spiral that never grows.
Maybe, the circles on top of other circles are the way this spiral grows into things and people and time.

Words are such weird vessels we invented. The sound is so charming.
Maybe bees in May are may-bees, or just may bes.

Subjects are such weak theories we invented. The sound is so ridiculous.
I am me and you are thee and we are us.

The gun on my lap is so strong. Never bows to other people’s intentions but her own.
I was never that strong. I bow all the time. Especially when I try to deny it.
Metal is so strong. We may forge it into other things, but it never bows.
They are always metal, as have always been, from the beginning of times.
I was never that eternal. I think not ever, not for a moment.

I forced the trigger as someone forged the gun. The metal was always itself.
I forced the trigger and disforged myself once again. I was never myself.

The end of things or people or time is just when we stop things, people and time, isn’t it?

Well. I stopped. Only now, after stopping, I am. And things are, and time is still.
Still, there is time. And people. And things.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Bien, bien... Mal, mas tudo bem. 

Uma alma gentil e leve, quando esbarra em algo do duro do mundo, cai como passarinho ferido, por estilingue ou por acidente. De qualquer forma, dói demais ver passarinho doendo.

E é tão difícil ajudar passarinho. Eles doem tanto na gente com a sua fragilidade, ou pelo menos com a fragilidade que tem a leveza aos nossos olhos de criaturas terrenas. Então, nos desesperamos de querer estancar a dor deles de alguma forma que estanque a nossa.

Mas passarinho não suporta isso de dedos em volta, nem que seja para colocar curativo. A gente então se descobre hesitando entre duas dores de passarinho. Ainda assim, resolvi que ia tentar: escrevo para minha amiga alma gentil de passarinho, que escrevendo eu não preciso estar presente.

Aí vai, minha presença em alpiste. Que te alimente, se quiseres; que brote para ser alpiste no futuro, se quiseres. Alma gentil de passarinho, não quero desnaturar o teu pensamento esvoaçante com minha voz de chumbo e meus pensamentos de chuva. Escrevo e envio minha presença, em alpiste.

Bem, bem. Acho que é normal não estar bem quando a gente remove alguma parte qualquer. Até porque, veja você, como é que a gente vai saber o que significa estar bem, nesse novo conjunto-eu que se formou? Pois então.

Como é que vai saber se isso que a gente está sentindo é mesmo falta, é mesmo barulho de vazio, ou se é só um novo barulho de cheio? Um barulho de cheio diferente do que a gente estava acostumada e reconhecia?

Bem, bem. Ficar triste por você, eu fico, que não tem jeito. Imagina o seu gato virar para você e dizer assim: "Olha, quando eu morrer, você não fica triste não".

Não dá. Como é que a gente não vai ficar triste, como é que vai evitar? Saber a sua tristeza chega muito mais rápido, alma gentil que eu chamo de amiga talvez sem dever. Sua tristeza chega mais rápido do que eu posso raciocinar a naturalidade da tristeza das pessoas.

Bem, bem. Dar tempo ao tempo acho que é mesmo coisa que não há. Que o tempo é uma entidade que a gente inventou um tanto autista, justamente para que fosse justa. Senão, ia acabar correndo mais ou menos de acordo com suas afinidades e pronto, desafinava tudo para todo resto do mundo, o tempo todo, e toda vez que alguém fosse consertar, ia piorar mais ainda.

Acho melhor deixar o tempo em paz. Só dê tempo a si mesma, sim? Que tempo é esse, não sei bem ao certo. Depende das peças que formem o seu novo inteiro. Não sei se o seu tempo é tempo de andar sozinha na garoa, se é tempo de galopar secando as lágrimas no vento, se é tempo de filmes bobos, se é tempo de comprar algum adiamento químico, se é tempo de conversas de chantili em cafés, se é tempo de gotejar as toxinas pelos poros noite afora...

Não sei. Mas, qualquer que seja o seu tempo, ou melhor, quaisquer que sejam as combinações que façam o tempo ser seu, dê todo o tempo que puderes dar a si mesma, sim?

Sim, sim, eu sei que nome deram para o co-agente estopim do seu desbalanço. Sei que esse desbalanço leva o nome de doença no mundo das pessoas que insistem que tudo tem um nome mesmo. No mundo das pessoas que insistem que são coisas distintas, as coisas diferentes umas das outras. No mundo das pessoas que insistem que têm certeza.

Eu sei, lindinha. Sei os nomes que você diria, se não machucasse à toa, dizer assim para quem nem se conhece direito.

Não importa, enfim. Eu sei, já, mesmo. Não se debata, passarinho. Não por isso.

Se precisar mesmo de qualquer coisa, ou mesmo precisar de qualquer-pessoa, se servir o que eu arranjei de fazer com o que eu sou, pode ligar. Ligue mesmo, sim? Nem que seja para me contar uma piada boba sobre alguém que sentou ao seu lado no ônibus, rir um pouquinho e esquecer de chorar.

Bacio. Estou aqui, engrossando o grupo dos que querem te proteger dos atropelamentos do mundo. Mas sem gaiola.

sexta-feira, setembro 02, 2005

Tudo no Mundo 

Não agüento mais isso, de querer você. Não assim, dessa forma.

Não agüento.

Não agüento mais precisar tão em primeiro lugar de quem não precisa nem um segundo de mim.

Não agüento mais que o centro da minha vida seja alguém que não me vê ao menos como satélite.

A título de nada eu recebo nenhuma migalha que mantenha o meu vício. O vício que se alimenta de mim, que não me alimento de nada.

E dane-se a razão e o bom senso, que não estou viciada nem louca, mas em condição análoga.

Quero mudar de você. Chega do meu Tudo No Mundo não me conter.

Quero um outro conjunto universo, um em que eu mesma caiba.

Chega da minha felicidade natimorta me lembrando a gestação de tudo o que o universo tinha, tudo, inclusive todas as coisas mais bonitas, das contas de vidro às galáxias.

É preciso gastar o luto todo. É preciso acabar com esse luto.

É preciso tempo, para não rasgar os meus pontos. Que remendei eu mesma todos os meus cortes.

Os históricos cortes histológicos, os primeiros que eu fiz em mim, para traduzir, em esquemas de moléculas orgânicas num quadro negro, tudo o que eu era para explicar para você.

Vou fechar os cortes todos que abri com pontos. Assim, sem vírgula: abri com pontos, fecharei com pontos. No fim, todo corte é um ponto.

Toda linha, no fim, é um ponto.

Mas estão um pouco frescos, os pontos. O monstro recém-descoberto em mim é muito mais forte que os pontos.

Hoje, preciso me concentrar só no hoje. Se olho para frente, me deixo morrer aqui.

Só hoje, eu preciso escapar, de algum modo, da celebração que tudo no mundo está fazendo para si mesmo.

De alguma forma, eu, que sobrei do lado de fora da linha do conjunto universo de tudo no mundo, preciso escapar.

Dois olhos azuis, imensos e lindos, hoje me disseram que a gente precisa sempre de duas coisas: um plano e um refúgio para o coração.

Me abraçaram bem apertado e disseram, quando eu chorei, que o que eu tinha de mais bonito era justo esse advérbio de intensidade quase que pronome absoluto anti-sintético.

Os olhos azuis, meus gurus, meus mestres sempre, vieram e me lembraram que eu ainda estou viva, ainda que esteja fora de todas as coisas do mundo. Os olhos azuis vieram, mais uma vez e me salvaram de ficar sozinha, do lado de fora do tudo no mundo.

Meu refúgio para o coração? Acho que se chama Nada do Mundo.

Todas as possibilidades e os devires, eu vou colando em volta de mim, a título de moradia. Todas as possibilidades mais bonitas eu coleciono e amalgamo em volta do meu coração, a título de memória. Escondo por lá, lá nos devires, o meu coração.

Afinal, ainda que nada venha, devir é coisa que sempre há.

Meu plano é, só hoje, estar de fora de Tudo no Mundo, no meu Nada do Mundo. Só por hoje. Só enquanto minhas linhas ainda precisarem de pontos.

"Sleeps With Butterflies" - Tori Amos 

Airplanes
Take you away again
Are you flying
Above where we live
Then I look up a glare in my eyes
Are you having regrets about last night
I'm not but I like rivers that rush in
So then I dove in
Is there trouble ahead
For you the acrobat
I won't push you unless you have a net

You say the word
You know I will find you
Or if you need some time
I don't mind
I don't hold on
To the tail of your kite
I'm not like the girls that you've known
But I believe I'm worth coming home to
Kiss away night
This girl only sleeps with butterflies
With butterflies
So go on and fly then boy

Balloons
Look good from on the ground
I fear with pins and needles around
We may fall then stumble
Upon a carousel
It could take us anywhere

I'm not like the girls that you've known
But I believe I'm worth coming home to
Kiss away night
This girl only sleeps with butterflies
With butterflies
With butterflies
So go on and fly boy

quinta-feira, setembro 01, 2005

Preço 

Eu, do alto da minha arrogância.

Eu, do alto da minha arrogância, sentada no meu trono de papier machê.

Observo o mundo com uma distância que construí ao começar todos os parágrafos da minha vida orgulhosamente trombeteando um pronome pessoal que se diz reto.

As línguas ajudam, já que há muito mais do mundo em mim do que eu suporto admitir.

Veja bem: a primeira pessoa é sempre a do singular.

Os ingleses, pragmáticos e schopenhauerianos como se já nascidos octogenários, colocam logo o Eu com letra maiúscula, pouco importando o resto.

A gente ri, acha muito egocêntrico, quando está naquela fase do livro ficar em cima da mesa.

Mas, em verdade, é muito honesto e direto. Se custa a gentileza, bem... tanto melhor. Falamos de ingleses, não? Então.

Poupa tempo. Poupa o esforço de moldar frases ao ego. Facilita o estilo: a reconfortante maiúscula estará sempre lá, santa.

Eu, observando o mundo, sempre me pretendi distante. Ainda que as pessoas, de um modo geral, estivessem bem dispostas a me ajudar nessa tarefa, parte do trabalho eu adorava que fosse mesmo meu.

Narciso e seu lago de suor e lágrimas. Se fosse contemporâneo, teria uma banda emo.

O afastamento propositalmente arquitetado do meu trono de celulose me permitiu permanecer sensível. Isso, porque também minha sensibilidade exige distância.

Olho para a janela e vejo a minha silhueta, quase aquarela sobre o vidro. Lá fora, dá para ver a umidade do dia no movimento das coisas. No canto do telhado, uma construção familiarmente celulóidica.

Um vespeiro, pintado a óleo, escuro, nítido, brilhante. Imperativo. Impermeável à minha aquarela.

As vespas. As vespas pousadas ao redor do vespeiro não se movem. Vespas.

Bato levemente com a caneta no papel, enquanto semicerro os olhos para observar as vespas com menos foco. Vespas.

As vespas não produzem nada que nos sirva: nem mel, nem cera. Não nos interessa tê-las por perto. Não nos dão nada.

As vespas ferroam ferozmente para se protegerem. As vespas são indóceis. Protegem com violência o que julgam ser seu. Assustadoramente humanas, as vespas.

As vespas não são enganadas com fumaça e espelhos. Não caem no pão e circo em que prendemos as abelhas. Pouco ligam para nossas plantações de flores para vender a senhoras que lembram conjuntos de pires e xícara.

As vespas andam calmamente pelo telhado, como se andar pelo teto fosse assim como comer o café da manhã.

Por impulso ou por cultura, não sei dizer, me ocorreu mandar arrancar o vespeiro. De algum lugar pulou uma ficha na minha memória que dizia que seria preciso queimar o vespeiro para que as vespas não voltassem a reconhecê-lo como seu e o reconstruírem.

Então, por natureza ou por cultura, também não sei dizer, resolvi que ia me partir em duas para ter algum contraditório, esse mundo que eu vi.

Por que é que eu tinha o direito de arrancar o vespeiro? Bem, basicamente, eu tenho o direito, sim, porque posso e ninguém vai me impedir.

E quem vai ter coragem de dizer que não é isso que é ter Direito?

Lembrei de uma das minhas frases favoritas, de Juvenal:

Sed quis custodiet ipsos custodes?

(Então, quem vai tomar conta de quem toma conta?)

Pensei nas vespas. Eu tinha escrito, antes, que não gostava das vespas porque o ferrão é muito barato. Ferroar, para as vespas, é muito barato. Eu achava que gostava mais das abelhas, que faziam casas de cera e recheadas de mel. Abelhas, que para ferir precisavam morrer.

Achei que não dava para não gostar de um bicho que, para se defender, precisa morrer.

Agora, fico olhando para as vespas passando através da minha imagem aquarelada na janela, entrando em mim por pupilas humanas e ficando presas em retinas humanas.

Fazem muito bem, as vespas, de terem ferrões baratos, no fim das contas.

Ser vespa também é muito barato, num mundo em que as pupilas são humanas.

Bibliografia: AMOS, Tori - The Beekeeper

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