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quinta-feira, março 31, 2011

Adivinha o que tem pro almoço 

Eu abro a geladeira e apoio a cabeça na portinha do freezer.

Ali, logo na primeira, tem um tupperware normal com uma tampa azul normal. Dentro do tupperware, a pior paella vegetariana que a humanidade já experimentou em toda a sua longa tradição de paellas vegetarianas que não dão certo. Flashback pro dia anterior.

Estava tudo indo bem, o negócio estava com um cheiro delicioso de curry com cebola em lá menor. Um monte de cheirinhos gostosinhos salpicavam o ar. Uns cheiros assim como notinhas curtinhas de só encostar o arco no violino, rapidinho. E um violoncelo bonachão de curry com cebola rindo contagiosamente alto no fundo.

Daí, veio uma chuva de arroz e estragou tudo. Eu sempre odiei chuva de arroz mesmo, coisa mais boba.

O arroz pegou tudo o que estava funcionando e apertou grudado em si, tipo uma tia chata e suada, estragando a alegria das crianças com abraços obrigatórios para fotografias obrigatórias. Mães com olhares fuzilantes e crianças contra o paredão das memórias que eram pra ser bonitas, que nem borboletas presas com alfinetes.

Tudo acabou assim: com um grande, amaciado e desafinado monte de arroz. Cheirando levemente a curry, o riso do violoncelo ainda ecoando pelo corredor.

E me deu vontade de rir da nossa cara de desespero quando a tragédia do arroz se abateu sobre nós. Eu comecei o riso, dei uma pausa e me virei pra te chamar, pra você poder vir rir junto do que eu tinha lembrado.

Mas eu tinha esquecido. Eu virei pra dizer “Ei, adivinha o que tem pro almoço?”.

E dei de cara com a sala vazia. E o silêncio.

(a luz do canto estava acesa em plena manhã, pra piorar tudo)

Eu olhei pra paella no tupperware e o pior de tudo é que ela me entendeu. A gente ficou se olhando pela janela do microondas.

A gente comeu olhando pra torre lá fora, em silêncio. Tomando cuidado pra não esbarrar em nada que pudesse quebrar.

Na nossa própria casa, comendo com o prato nos joelhos. Na pontinha do sofá, ouvindo o barulho dos talheres.

Ei adivinha o que tem pra jantar?

Vê se volta logo.

terça-feira, março 08, 2011

8 de Março - reflexões e reflexinhos sobre os 100 anos do dia internacional da mulher 

Oi povo.

Aqui em Toronto, o sol some e aparece no céu branquinho, brilhando alternadamente uma luz branca e fria, como uma gigantesca lâmpada fluorescente encapada de nuvens, e um aconchego enganoso, amarelo e morno, pela janela: lá fora faz menos dez celcius. Só de sair do quarto com aquecimento extra para dar um pulinho na cozinha ou no banheiro eu já me lembro o porquê de ter decidido sair de casa 3 vezes hoje - e 3 vezes deixado pra mais tarde.

E esse sol na minha janela me meu uma vontade de escrever, de novo. De escrever aqui, de novo. Assim, de repente, sem explicação lacaniana nenhuma pro meu dadaísmo.

(Nu-blado, tablado nu, nu-lado, nudez de lado, um lado novo e nu? ¬¬ ...)

Sem evento cataclísmico traumatizante ou insight de iluminação cósmica nirvânica. Sem nada disso. Só estava na hora, só isso. Tipo o sol. Ou fruta: de repente, tá pronta, e só. Pluct.

Mas não é só isso que o sol me diz hoje, nesse código morse da gente disfarçado de leve oscilação aleatória no aquecimento global. Por exemplo, me pego debatendo comigo se ele está dadaísta como eu, ou se é renascido-em-Lacan como ela ali na poltrona. (Pessoalmente, sempre achei o sol bem mais pra Freud, uma coisa assim tragédia grega épica, um trauma titânico inevitável e terrível, ocorrido antes de você se entender por gente e que destruirá toda a raça humana, para toda a eternidade diga-se de passagem, numa bola assada e desolada e/ou congelada e obliterada.)

O rádio está ligado e hoje é oito de março, então o vai e vem do sol inevitavelmente se alinha devagarzinho com as histórias das mulheres no rádio. Tem nuvem no meio do caminho, sem nuvem no meio do caminho. Calorzinho amolece a neve, vento cortante congela a água novamente.

Conquistas hercúleas. Viva! Sol quentinho batendo no pé e luz dourada se espalhando pelos tacos de madeira. Votar e ser votada, poder participar do mercado de trabalho, pílula, licença-maternidade, educação, acesso a aborto seguro (É isso mesmo, tem gente aqui que acha que mórula não é bebê e que a vida não começa na concepção coisíssima nenhuma. Amén.), assédio sexual e estupro conjugal são "descobertos" e tratados como crimes, calça comprida liberada pra galera, direito a ter sua própria personalidade jurídica mesmo depois de casada, direito à propriedade, nada de espartilho - a não ser em ocasiões especiais.

E aí um monte de coisa ainda falta. O sol disfarça e sai de fininho atrás de uma nuvem. Representação proporcional em cargos de liderança e nos congressos, representação mais justa na mídia, salários iguais para trabalhos iguais, igual divisão das responsabilidades domésticas e de criar os filhos, ainda vivemos uma cultura do estupro, onde mulheres são criadas para ter medo toda santa noite e, ainda assim, são estupradas E culpadas pelo crime de que foram vítimas, falta de acesso ao aborto seguro em todos os lugares (vide acima), falta de acesso a educação e a saude especializadas, violência doméstica...

Uma entrevista sobre a falta de mulheres na nova assembléia constituinte do Egito, apesar delas estarem presentes nos protestos, irmamente integradas em todas as tarefas - quer dizer, mais ou menos: a não ser no momento em que uma repórter americana foi separada da sua equipe e brutalmente estuprada por vários homens, num país em que 98% das mulheres estrangeiras reportam ter sofrido alguma forma de assédio sexual.

Outra entrevista com Xin Ran sobre seu novo livro, sobre as mães que se suicidam quando descobrem (!) que não precisavam ter matado suas filhas primogênitas, ao contrário do que manda o costume que ainda prevalece na China rural.

E o sol vai, e o sol vem. Às vezes, parece que estamos só soprando nuvens.

Mas aí eu lembro: desde que começamos a soprar, 100 anos atrás, o sol tem aparecido mais e mais.

E eu volto a soprar, com força. Fffffuuu!

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