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quarta-feira, fevereiro 22, 2006

De Joelhos Ao Pé Do Ouvido 

Ainda aqui. Esperando. Esperando o quê? Quem? Por quê? Não sei. Esperar: a atividade de ainda não.

Por pouco, mas ainda não.

De cinco em cinco minutos, olho para o relógio. Não sei que hora espero, então a agonia espeta agulhas de crochê na minha garganta e brinca de jogar os meus pensamentos.

A Agonia, em um vestido cor de sangue, me põe colares de arame farpado enquanto me beija.

Calafrios. Espasmos contidos, meu ventre repuxa e dói. Gritos engolidos, na boca, gosto de derrota e dói.

E toda essa vontade. Uma vontade que me sobrepuja, me chuta os joelhos por trás e zomba de mim porque eu sempre caio.

Eu sempre caio.

Não agüento mais. Vou ao banheiro, jogo água no rosto e tento lavar de mim essa vontade de chorar. Essas manchas de angústia nos meus olhos.

As manchas aumentam. Tranbordam meus olhos, escorrem e fazem poças em torno dos meus pés. Manchas marrons de angústia em torno dos meus pés. Esperando, vejo as poças de angústia me engolirem, devagar. Devagar, elas me sobem pelas pernas, ocupando tudo.

Encharcando tudo. Meus tecidos pesam, encharcados de marrom.

Intoxicada. Preciso sair daqui. Preciso ir para algum lugar. Preciso correr até que doa, e só então olhar para trás.

Fugir daqui. Ainda que ainda sem saber o que me faz fugir, para onde ou por quê.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

8 de fevereiro, amor. 

Eu quis brincar de detetive com você e escrevi num pedacinho de papel:"8 de fevereiro, amor."

Deixei na sua mesa. Te espero na resposta.

Expectativas em vestidos brancos olhando para o chão. Atitudes de terno preto oferecem a contradança, de peito estufado e barba meticulosamente aparada, do outro lado do salão de baile. Escolhas em preto-e-branco desenhadas no chão.

Cavalheiros andando em L por entre as damas, rainhas no alto das torres, bispos de espadas e seus peões, pequenos e iguais, minhoca de gente.

8 de fevereiro. Xeque.

Anticorpos e anticristos 

Você me fixa esses seus olhos, lá do outro lado da sala. Todo mundo em volta conversa animadamente e não percebe a minha alma se debatendo, dourada pela pele do abajur. O copo treme levemente e pára um instante no meio do trajeto até a minha boca. Você ainda está olhando avassaladoramente na minha direção. Dói. De repente eu lembro de uma ilustração da tênia solium, com ganchos e ventosas de rasgar intestinos.

Porque doía demais, você olhando para mim. Eu piscava o tempo todo, com medo de tudo aquilo ser mais uma das minhas fantasias, e depois com medo de não ser. Eu sempre fui muito mais feliz dentro da minha cabeça, mas hoje acho que isso é filhote de tristeza com arrogância.

E doía como nada no mundo. O quê? Como o quê?! Você, oras. Você me doía de um jeito que não tinha remédio. E você não piscava: elevava o copo, baixava o copo, tudo muito elegante, sem nunca me deixar respirar. E acho que foi assim que tudo aconteceu: porque você não deixou que eu respirasse, que eu tivesse um segundo para fugir.

Seus olhos mandavam mensagens que eu não sabia ler, mas ainda assim não consegui parar. Como ver um filme francês sem legendas, nuvens lilazes no céu laranja ou uma poça de óleo no asfalto. Meu coração veio parar no pescoço: pressão nas têmporas e explosões nos ouvidos. As pontas dos dedos dormentes e cehguei a cogitar a hipótese de que não sentiria sempre tanta raiva.

De repente, você apoiou o copo na mesa em que se encostava, como quem saca um revólver. Andar silencioso e invisível de felino, ninguém nem virou para ver quem estava passando, mas eu via os seus olhos entrando pela minha boca e fixando ganchos no meu intestino.

Acordei como um tapa na cara, do teu lado, hoje e tempos depois. Olhei para os riscos que a luz fazia na parede, quase da cor da pele do abajur e, de repente, pensei em tudo isso emoldurado e embalsamado. Múmia é memória? Pensei em te ver morrer. Ou esmorecer. Projetei no teto: o olhar de rasgar intestino, um dia, vai ser visto da terceira pessoa. Deixei a transitoriedade entrar na minha carne e injetar devagar os sais vermicidas. Chorei um tantinho, de luto pré-datado. Soprei por sob a pele para te dar o devido valor. O valor devido, que devemos e pechinchamos, que devemos e amesquinhamos, das coisas mais bonitas do mundo: as que morrem.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Papier Manque 

Sentei no parapeito e me prostrei diante do altar da minha divina, infinita, inefável e onipresente ignorância. Toquei com a ponta dos dedos o tecido do bolso e fiquei vincando a existência de um pedaço de papel, tentando fazer daquilo algo mais palpável, alguma coisa que se pudesse alcançar.

Tinha sentado no sofá, vestida, esperando o telefonema. Creio que só se senta vestido no sofá para esperar telefonema ou visita, o que de certa forma, dá no mesmo. Achei um pedacinho de papel querendo escapar do bolso, levantei um tantinho o quadril para facilitar o parto e puxei. Virei de verso. Alcancei um hidrocor preto e comecei a acariciar o tempo, abaixo do queixo. O tempo olhava para a janela e lambia os bigodes.

Sem notar, escrevi um nome. Depois, parei e fiquei um tanto surpresa com o nome que tinha escrito. Por um momento, quis acreditar que não tinha sido eu, mas essa saída me pareceu covarde e me envergonhei por ela. Se era capaz dessa covardia de fugir de mim mesma, era bem capaz que tivesse sido mesmo eu a escrever, daquela forma assustadora, justo aquele nome, que eu jurei que nunca.

Escrevi o mesmo nome. O que eu passei a vida toda jurando que não entendia como as pessoas passavam a vida escrevendo, aquele mesmo. Escrevi, como aquelas coisas que a gente faz quase molecularmente, quando a gente se surpreende sendo alguém que nem se sabia poder ser. Preenchi as bordas do papel com pequenos triângulos enquanto raciocinava de onde diabos tinha vindo aquele nome. De repente eu conseguia entender, atinar com alguma razão que me justificasse aquela excessão e que me desse alguma impressão segura de que aquilo nunca ia voltar a acontecer.

Guardei o papel no bolso, decidi parar de me preocupar em amarrotar os meus tecidos e me sentei no parapeito. Os pés balançando, fiquei vincando o contorno do papel dobrado dentro meu bolso. Olhei para o móbile irritante batendo tlin tlin tlin acima da minha cabeça e pensei em tantas coisas engatadas que depois eu nem sabia mais de onde aquilo tinha vindo. Queria poder anotar em algum chip na minha cabeça as coisas que eu penso. É tão exaustivo repensar e traduzir tudo, digitar, corrigir, explicar.

Tantas pequenas coisas que eu anoto em listas, todos os dias, para fazer e não faço. Sinto que estou deixando crescer um carvalho na minha porta e trepadeiras nas minhas janelas; sinto que minha falta de visão me condena a tomar caixotes da vida o tempo todo.

Quando foi que me tornei uma pessoa tão domingo?

Se há um deus em que acredito, é uma enorme bola de vácuo, enganos batizados e certezas escritas a fogo eterno. Tentei fugir dEla, mas quanto mais longe corria, maior Ela ficava e gargalhava da ótica e do meu espanto. Hoje, mantenho-a por perto, para fazê-la o menor e mais previsível possível: impossível.

Sento no parapeito e me prostro diante do mundo, altar da minha divina, infinita, inefável e onipresente ignorância. Amén.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Diagnóstico Discursivo Do Amor Que Me Vem Vindo 

Quando estás ao meu lado, amor, a vida é simples. É fácil e leve e clara. Meu raciocínio desliza, meu humor quase se pode beber. Estou assim. Não sei até quando, não juro nada, que se juro, começo a mentir. Mas estou assim.

O cheiro da pele do teu pescoço me vem como uma granada de efeito moral. Teu sorriso rasga a própria existência e deforma o espaço-tempo, me arremessa e me traz de volta. O tempo voa, o tempo se arrasta. Sinto como se tivesse acabado de colocar óculos e, de repente, novas palhetas de cores e de focos. Vejo a textura da luz que se refrata nas suas costas, de manhã, quando você dorme e os olhos enchem d'água.

Deito à noite e imediatamente reajo a ti, principalmente quando não estás comigo. Ai, a tua presença vazia: pois não existe também vazio presente? É como se não pudesse lidar com a falta de corpos no teu lugar do espaço.

Não te quero para mim, te quero em mim. Não te quero para ser feliz, mas sendo feliz. Não me rasgo, meu peito não explode, não me és descontrole ou estado de sítio: és a paz, a delicadeza do equilíbrio, o meu ungüento, o meu sorriso insone, a minha paciência com o alheio e a minha gentileza com o próprio.

Às vezes ainda choro e por vezes ainda gemo de dor, mas já tão raro que sorrio: vintém. Às vezes lembro da minha solidão, abro o vidrinho e tomamos um chá preto. Não sinto agonia, como antes, sentada hoje no parapeito da minha janela, como sempre. Moldura de esquadria de alumínio. Aquário, talvez. Aquário de gente: eu, caderninho, a esquadria de alumínio.

É como se, de repente, as cores, reagindo com o ar, molécula por molécula, fossem pachorrentamente mudando de lagartos a pássaros: de escamas a penas, de sibilos a cantos. Como se as umas fossem se tornando um pouco outras, até que outras, só. Muito outras. Como se as mulheres das pinturas pudessem ir envelhecendo, enrugando nas rachaduras da tinta.

Se me perguntas, não, não tenho rompantes alucinados de fogos de artifício. Olho para o lado e teu sorriso me faz feliz. Não feliz como vulcões, champanhas ou imperadores. Feliz como um campo imenso de margaridas amarelas. Feliz assim.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Simbiose Febril 

Ai, que diabo! Que diabo é isso que me falta? Que fome é essa, que me tira a razão e eu projeto, eu frito, eu bato com limão e gelo? Que eu canalizo para materializar e materializo para me enganar?

Que ansiedade sem causa, que saudade sem objeto, que inquietude sem descanso, que aperto tenaz, agudo, de pinça na alma! O tempo todo não sendo nada por muito tempo, quando começo a achar que encontrei a fonte, pronto, se me quebram as serifas e essa fome, como formigas, volta sempre e me rouba o açúcar enquanto durmo.

É falta, é falta, sim, mas não faz sentido: como bem lembrou o Rabino Meir, índio não pode sentir falta de coca-cola light. Não faz sentido sentir falta de algo que não se tenha idéia do que seja. Mas eu carrego a tal falta, mesmo sem compreender, como castigo de criança pequena.

Tudo pulsa. Tudo pulsa. Eu sempre achei que tudo pulsava, mas a minha falta não pulsa. Ela gira.

Já enjoada de mim, eu paro e tento me fazer focar nos tecidos organicizáveis que, para facilitar, eu chamo de “eu”. Podia fazer yoga, podia arrumar o quarto, podia organizar a minha agenda, podia estudar todos os dias, podia tomar mais chá-verde, podia praticar mais o violão, podia fazer aulas de piano e de francês... Em paz, eu sopeso todas os pequenos uploads que eu podia fazer. Mas a noite cai e não consigo dormir, volta e meia tudo volta e me pego procurando beleza que me faça chorar. Secura de transbordar. Falta. Dor na lógica, espasmo elétrico, falta.

Com as unhas enfiadas no ventre, eu gemo e tento não urrar. A falta. Meus olhos famintos vasculham os arredores, enredados, buscando algum guru, algum santo, algum salvador, algum mestre. Doces clichês de glacê, bandejas de prata, até se acha. Mas sou o monstro que sempre fui e que me tornei, tenho uma sede que não compreendo, como um pequeno lobo que só conhece o leite. Falta alguma coisa. Já ajoelhei a minha dor a deuses incontáveis, mas nenhum altar absorveu o veneno que me consome. Retroviral, ele muda de nome, mas fica.

A noite cai, o dia termina, ela gira. Falta. A febre volta, meu corpo luta, mas por fim desiste. Como eu, desconfia que me consome é o que me move e que o fim virá, mas só para parasita e hospedeiro, juntos. Simbiose febril, ela gira.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Totem e Tabaco 

Alguém está aprendendo piano no andar de baixo. A hesitação é verde e faz a música ficar ainda mais triste.

Estou sentada no chão e devia estar com calor. Mas não é por isso. Sento no chão porque odeio o sofá. Odeio esse sofá, tanto desconforto só para mim.

Eu não fumo, mas tem um maço de cigarros e uma caixa de fósforos esquecidos na minha bolsa. Talvez não esquecidos, talvez mesmo abandonados. Às vezes, é assim mesmo. Talvez nem esquecidos nem abandonados, só depositados. Sempre achei estúpido e pretensioso demais, querer adivinhar a verdadeira intenção. Seja de crime, seja de arte.

Há três cigarros dentro do maço e um bilhão de fósforos na caixa. Acendo um fósforo, deixo queimar. Arranco um fio de cabelo e queimo, em homenagem ao pianista desconhecido. Minha ridícula, minha sincera mirra.

Achei pouco. Arranquei outro. Fui buscar o pente. Queimo outro. Outro. Arrancado, outro. Depois, lembrei que tinha pesadelos com pessoas que raspavam todo o cabelo. Fiquei chateada. Estava me sentido empenhada no meu ritual.

Pensei que cigarro bem parecia incenso. Acendi o cigarro e apoiei, de pé, em cima da mesa, no canto, para ver se ficava. Ficou. Fiz com o dedo as diagonais do quadrado do tampo da mesa, para achar bem certinho o meio. Apoiei o cigarro no meio e empurrei um tanto pro lado. Esquerdo.

Aí mesmo. Agora. Pronto. Aceso.

Busquei uma faca. Peguei o segundo cigarro e cortei pelo meio. Olhei o fumo, achei feio. Fiquei pensando quantas ervas devia haver ali no meio, que cada marca devia ser meio que como vinho e tem uma nota disso e um buquê daquilo. Ainda assim, acho vinho bonito e o fumo continuava feio. Gostei mais do filtro. Guardei metade do filtro na xicrinha com pecinhas perdidas, quebradas ou não identificadas. Eu gostava delas assim e não queria jogar fora, então guardava na xicrinha.

Apertei o fumo solto com os dedos, fiquei tentando fazer uma piramidezinha. Na casa da minha avó tinha uma piramidezinha de pedra-sabão. O fumo não ficava. Molhei os dedos e apertei. Ficou. Mas agora não acendia. Tudo bem. Tem algumas coisas que não acendem. Coloquei do lado do cigarro aceso, de pé, que já terminava de queimar.

Sobrou um. Não atinava o que fazer com ele. Que que eu ia fazer com um cigarro?

Risquei um fósforo e deixei queimar, virei de cabeça para baixo para queimar até a pontinha. Risquei mais um. Mais um fio de cabelo. O piano parou, fiquei olhando para fora da janela, recriminando os prédios vizinhos.

Sempre. Sobra um, risco mais um, o piano para e eu reclamo com o vazio.
Pego o último cigarro. Levanto, vou até o espelho. Testo a aparência da minha versão tabagista. Devia ser confiante e chique. É patética. Dá vontade de chorar. Volto para o chão.

O incenso já acabou e a pirâmide ameaça desabamentos catastróficos. Amasso o maço de cigarros. O único prazer que eu compartilho com os fumantes: aquele prazerzinho de amassar o maço de cigarros.

Por fim, acendo o cigarro. Não queria terminar o meu altar assim, justo acendendo o cigarro. Mas eu não sou como devia, nem como queria ser. Talvez achar que se é como se deve ser seja um ponto comum entre a humildade e a arrogância. Ali, onde a cabeça morde o rabo.

O cigarro aceso passa a ter uma parte bonita: a ponta vermelha. O piano recomeça. Acho que vai recomeçar a chover.

O piano está melhor, não hesita mais. Acertou os tempos todos, dessa vez. O pianista deve ter ficado satisfeito e resolveu parar. Tocou só uma vez, tudo certinho, parou. Achei que tinha estragado tudo, que tinha profanado o meu altar e a minha homenagem, decidindo assim que música era pra ser eco solitário.

Apaguei o cigarro na panturrilha. Um momento e meus nervos se espalham no vento. Um momento e minha carne troveja. Por um momento.

O futuro traz tudo o que arde e a promessa do futuro sufoca o presente. Meu altar agora é ruína humilhada, quase turística. O futuro arde, já sem dor, nem prazer, acho que nem mesmo alguma raiva. Apagado, ruína.

Não adianta, eu não fumo. Minha droga é salgada.

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