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quinta-feira, março 30, 2006

Serpentes de Mercúrio II 

Serpentes de mercúrio vertiam do meu corpo. Eu me jogava com toda a força de encontro ao Anjo Vingador, pouco me importando se ele existia ou se era fruto da minha febre.

O Anjo espremia a minha carne e raspava meus ossos em busca das serpentes de mercúrio. Elas estavam lá dentro, agora eu sabia, porque as via saindo. E eu tomava distância o mais rápido que podia e de novo me arremessava contra o Anjo. As serpentes fugiam e assim saíam de mim.

Limpa, absolvida e rejubilada, eu jazia solta. O ar me entrava em grandes quantidades e o peito queimava como uma fornalha velha reativada. Eu sorria. Partidas todas as correntes de mercúrio, eu crescia. As correntes estagnantes já não me sustavam.

O ar entrava violentamente e meu sangue sôfrego vinha se banhar nele. O ar quente reagia com a minha carne e ela avermelhava, fervia, fundia. Expandia, ficava maior e incandescente rubra, explodia. Eu jazia solta e sorria. Lembrava da história de São Patrício, expulsando as cobras da Irlanda e achava graça. A febre baixava, o anjo encarnava, eu ria e as serpentes sapateavam.

terça-feira, março 28, 2006

Serpente de Mercúrio I 

A serpente de mercúrio escorria pela toca de vidro. Fluía atrás e à frente de si. O fim empurrava o começo e o começo puxava o fim. Ela olhava para o buraco da saída com um esgar de olhos que não me permitia detectar o que lhe passava pela cabeça. Pensamentos e sentimentos de serpente, silenciosos.

Falando línguas que nunca alcançarei, a serpente de mercúrio fareja odores que inexistem no meu mundo. Sua língua, bifurcada e ambígua, é ininteligível pela minha lógica de uma língua única.

Vendo o mundo fora de si através de uma linha, e não por um ponto de vista como eu, ela se abria muito mais e eu sabia. Pupila nascida rasgada. Ela via coisas que inexistem no meu mundo.

Correndo com o corpo todo, em uníssono, una, inteira, a serpente de mercúrio ria dos meus esforços de bípede para manter-me em pé. Tanta energia gasto para me manter, sempre e sempre, longe do chão. E para quê? Me forçava a pergunta: para quê?

Minhas mãos: meu maior orgulho, minha herança e meu trono, ídolo de primeiro escalão na igreja da auto-adoração masturbatória humana. Ainda assim, as minhas divinas mãos não lhe faziam a menor falta. A sua falta em um ser tão superior me humilhava e trazia de volta para casa, sob suas asas, a pequeneza existencial, filha bastarda e repetidamente renegada da consciência com a arrogância.

Seu mundo era constituído de um número inestimável de linguagens, todas absolutamente incompreensíveis para mim. A serpente de mercúrio jazia em eterno movimento na toca de vidro, sabendo coisas.

Eu olhava para ela sem saber se ela me via, se podia considerá-la "ela", se "ver" era um verbo aplicável, ou mesmo o que significava o tal "saber", preso ali, entre eu e ela.

Engoli a mim mesma. Era grosso, pegajoso, morno e amargo. Engoli, baixei os olhos e fiz a pergunta. Sem saber se ela me via, não queria olhar para ela. Perguntei sobre a minha essência doente e desesperada. Esperei pacientemente por alguma resposta ou algo que indicasse alguma resposta.

De dentro da toca de vidro, a serpente de mercúrio olhou para dentro das minhas carnes e soube a resposta. Mais que saber a resposta, soube sair e me indicar. Respondeu, no meu mundo, na tábua de ouija ou na tábua de Roseta, que algum profeta trouxe de um mundo além do nosso.

Respondeu as coisas que eu era incapaz de saber sobre a minha própria carne e voltou para a toca de vidro. Sentia-me um filho malcriado.
Com um misto de desprezo e da mais profunda inveja, sacudi o termômetro.

quinta-feira, março 23, 2006

Até O Caroço 

Dor engraçada, morder o caroço. A gente se certifica de todas as formas que achamos necessárias. Todos os nossos sentidos dão diagnóstico definitivo: polpa. Mas, na hora do vamos ver, no duro, no duro, caroço.

A gente tem toda a certeza do mundo que uma certa prática ou ideologia é coisa primitiva e extinta, que já esqueceu completamente aquele cara, que nunca mais vai comprar um sobretudo vermelho porque sabe que não vai usar... Tropeço epistemológico. O olhar altivo, fixado em futuro deitado em berço explêndido, fica cara a cara com o tato. Estatelar-se no chão. Ardem as mãos, gosto de poeira, sangram os joelhos.

Caroço.

Ando achando que a gente faz tudo ao contrário, usando símbolos do bom e do melhor pendurados no pescoço e tatuados na testa. Acho que deve-se cultuar como divindades, a serem constantemente lembradas e temidas, nossos próprios desvios e retidões, congênitos ou impressos, especialmente banais.

Mas, também, meu novo pingente me lembra que achar essa idéia genial e melhor que carregar sortilégios benignos é só a minha arrogância olhando altiva para o horizonte, por cima do meu pingente.

Bem, te encontro lá então. Até o horizonte. Até o caroço.

sexta-feira, março 17, 2006

Es Hängt Da Von Ab 

(Isso aí em cima, aprendi agora, é "depende" em alemão. Será que depende vem de algo como “dependurado”, como 'que pende de'?)

Se faz uma pergunta qualquer mais complicadinha e pronto, lá vem alguém com o diabo do “depende”.

Se “porque não” não é resposta, “depende” é?

Então... adivinhou.

Depende, porque a maioria das coisas depende de outras coisas e o resto depende de mais coisas ainda. Então, tudo depende, e se dizer só ‘sim’ ou ‘não’ é só ementa míope, dizer 'depende' é aquele cume da montanha da estupidez mais grossa e rotunda, lá onde tem aquela plaquinha “crassa” e um cuco toca o tempo todo.

Mas, também, depende. Se o dependente o usa como início ou, dependendo do caso, como fim de uma exposição de motivos, aí tudo bem.

Se bem que depende. Tem umas horas em que só dizer “depende” é chocante o suficiente. E, também, dependendo do locutor, explanar é crime hediondo e inafiançável contra quem ouve.

Enfim, só uma besteirinha que me passou pela cabeça.

Dependuradamente,

J.

terça-feira, março 14, 2006

Caro Amor 

A dor me sobe em golfadas. Queimam quando sobem, liberam seus gases venenosos pelo meu nariz afora e descem geladas.

Minhas mãos se espremem para evitar o tremor e meus olhos já não abrem. Tento conter o estrago porque tenho medo de que varra vidas, esse meu sangue ígneo tão incautamente deixado sobre Pompéia.

As páginas escorrem sob meus olhos mas não produzem efeito. Leio para trazer mais rápido um futuro que demora a vir me resgatar. Leio como quem remenda roupa velha que tem que agüentar mais um pouco e como quem faz crochet porque, se não o fizer, vem a vontade de chorar.

A comida escorre como bolos de areia molhada descendo pelas pernas. Busco água para acalmar a minha sede e ela vem salobra. Engasgo, busco apoio e o chão de areia me joga para o céu. Tropeço, busco ar e ele está acima.

Alguns centímetros acima de mim, jaz o ar. Alguns centímetros, toneladas de ar.

A dor me sobe em golfadas. As lágrimas correm, mas ao redor a água é salobra; os pés e as mãos sangram, mas a areia ignora e ainda é branca.

Sal e areia misturam as cores nos meus olhos encharcados de secura. Já não posso distinguir onde fica o chão ou o céu. Parece-me tudo a mesma coisa e o norte foge de mim como um daqueles pontos luminosos que só se enxerga com o canto dos olhos.

As pontas dos dedos dormentes vibram levemente. Engraçado como, com todo um turbilhão ao meu redor, tudo o que sinto em primeiro plano é a vibração da ponta dos meus dedos. Mas deve fazer sentido, se o meu 'galáctico' não é adjetivo que se refera a muito mais que uma esfera de alguns metros de diâmetro.

O horizonte escorre lentamente. Enquanto giro, inconstantemente arremessada para todas as direções em torno do meu próprio eixo, o horizonte é constante: escorre lentamente. Para cima ou para baixo, já não sei. Sei que, enquanto giro, tudo o mais escorre como um líquido denso.

A dor me sobe em golfadas. Quero chorar, mas cada grito me leva um naco de vida que é por demais precioso. Engulo a morte, pacientemente, e deixo que o sal dourado me leve pela mão.

quarta-feira, março 01, 2006

Enquanto A Volta Não Vem 

Quando eu me perder por alguma janela, onde quer que esteja, saiba.

Quando eu hesitar um momento, com o olhar vago-e-preso em alguma coluna, saiba.

Quando meus dedos se crisparem nos braços de alguma poltrona, saiba.

Quando uma lágrima silenciosa e quente vier, saiba.

Quando qualquer música tocar, saiba.

Quando perfumes me levarem pelos ares, saiba.

Saiba que estarei alguns graus mais fria,

Alguns centímetros mais ferida,

Um tanto mais perdida,

Um bocado mais vazia.

Saiba que apesar, ainda,

Quando o nunca, às vezes,

Certamente que não,

Embora qualquer talvez.

Saiba que tudo está ao meio,

Que não há vogais nas palavras,

Que o tempo que falta me sobra,

E o vazio me fala de você.

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